terça-feira, 22 de outubro de 2013

Estrada

Você anda por uma velha estrada quando você aparece. A estrada é de barro e pedras, fechada dos dois lados por um bosque denso, e é noite. Noite não, fim de tarde, fim de tarde. E você aparece, no meio de uma bifurcação. Vestido de coringa da corte.
-Olá meu amigo companheiro, meu eu do passado, minha versão beta, meu projeto inacabado. Ouça bem e fique esperto, o perigo mora por perto. Tudo certo?
-Quem é você? – Pergunta você, para você.
-Ah, não vê? Não lembra seu pai quando dizia: Mais cego é aquele que se recusa a enxergar? Não vê? Não vê que sou você?
-Meu pai nunca falou isso. Quem é você, sério mesmo, eu to atrasado.
-Eu sou você, e você sou eu, velho amigo, companheiro querido, não fique em dúvida, com cara de gato de rua em cima do muro. Veja que sou só você no futuro.
-Não é não. – Você responde, tirando o celular do bolso pra ver as horas. – Eu não falo rimando. Falar rimando é coisa de bobo. Agora deixa eu passar.
-Coisa de bobo! Deixa eu passar! O mundo inteiro dando voltas, pessoas nascendo e morrendo, e você querendo passar!
-É...
-Mas, aaaah. Eu tenho muito o que te ensinar.
-Sério mesmo, para de rimar com verbo. É feio.
-Feio é ficar aí no meio.
-Ok, essa nem fez sentido. Agora eu vou, viu? – Você diz, passando por ele e seguindo em frente.
-Feio é ficar aí no meio das passagens, sem saber qual escolher. Pra que lado você vai?
-Eu... – Você repara nos dois caminhos a sua frente, e para no meio da bifurcação.
-Esquerda ou direita?
Você não responde.
-Eu sei a resposta. Pra mim, a sua escolha já foi feita.
-Não foi não. Eu não escolhi. – Responde você, que ainda olha de um caminho para o outro, em dúvida.
-Escolheu sim, só não lembra, porque não aconteceu, e a gente só lembra do que já viveu. Engraçado né? Como a gente só lembra do passado, e não percebe que tudo já aconteceu.
-Você rimou aconteceu com aconteceu. Sério, você é muito ruim nisso. – Você responde, virando para encarar novamente a estrada.
-Hahaha. – Diz o coringa, meio sem graça.
-Ok, pra que lado eu vou? – Você pergunta, se dando por vencido.
-Aaaah, você não sabe? A decisão já não te cabe, eu sei, de tudo que eu já presenciei...
-Por favor, para.
O bobo da corte suspira e olha para o lado, contrariado.
-Ok, ok, a gente faz do seu jeito. Chato.
-Obrigado. – Você sorri e repete – Pra que lado eu vou?
-Eu acho que... Tanto faz. – Responde o bufão.
-Ah, então vai tomar no cu. – Você se vira para ir embora.
-Porque não foi você que escolheu.
-É, foi você, porque você já viveu, tudo já aconteceu, pra você e pra mim, só faz diferença relativa, tipo assim, quando os ponteiros do relógio andam pra trás e o futuro vira passado pelas coisas que você faz. Aham. Entendi.
-Ei, você é bom nisso!  - Diz a sua versão coringa, correndo para te alcançar. – Mas não é isso.
-Não? – Você para. Agora os dois caminhos se estendem a frente de vocês.
-Não. A diferença é nula, e eu vou explicar porque, sua mula.
-Você está fazendo de novo. O negócio das rimas.
-Cala a boca. Pro que eu vou te ensinar, toda rima do mundo ainda é pouca. Porque o mundo começou no big bang...
-Quero ver você rimar com bang.
-Calado! Como eu dizia, o mundo estava lá, recém-começado. E todas as partículas, juntas e quentes e agitadas, explodiram e tudo se espalhou. E foi assim que começou.
-O universo?
-O universo! E também a corrente! Você não sente?
-Aff, essa foi muito forçada, na moral.
-Shh. A corrente, você aprendeu na aula do professor Marcão, que ensinava física e tocava violão, lembra? Tudo é ação e reação.
-É?
-É! Tudo é uma corrente, e uma coisa leva a outra. O mundo é um jogo de sinuca e os átomos são bolas, não percebe?
-Hm.
-E a primeira explosão botou todas em movimento e em ação, e o resto é tudo reação. Bate, rebate, debate, uma na outra, numa corrente infinita que resultou no ser humano e na cabrita.
-Certo.
-Em Napoleão e torta de limão.
-Putz.
-Na guerra mundial e no pré-sal.
-E já entendi, na boa.
-Tudo uma reação em cadeia, tudo ligado pela mesma teia, tudo direcionado pelo pontapé inicial, o big bang que deu origem ao cabine e ao carnaval.
-Parou?
-Parei, parei. Enfim, é isso.
-Isso o que?
-Você não entendeu ainda? O nosso universo inteiro é feito de partículas minúsculas que respondem a leis pré-estabelecidas! Quando nós explodimos, cada uma foi para um lado, e todo o resto é consequência!
-É?
-É claro que é!
-Mas eu não sou. Eu posso escolher a esquerda ou a direita.
-Pode?
-Sei lá. Posso?
-Bode.
-Que?
-Eu to ficando ruim nas rimas mesmo. Mas não pode, acredita.
-Como não posso? Posso sim, eu posso escol...
-Suas decisões são só partículas reagindo com partículas, colocadas em movimento bilhões de anos atrás por uma inacreditável força que você não controla.
-Hm.
A sua versão coringa sorri e senta no chão, em posição de lótus.
-E o que eu faço agora? – Você pergunta, olhando dele para a bifurcação.
-Sei lá, isso não é problema meu. – Responde ele, fechando os olhos e apoiando as mãos no joelho.
-Como não é problema seu? – Você pergunta, indignado.

-Quem criou o universo não fui eu. – Responde ele, e você jura que consegue ver uma sombra de um sorriso nos lábios desse filho da puta.

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