quarta-feira, 5 de junho de 2013

Pipoca e Cinema

Foi tudo culpa do vizinho de cima, moça. Ele resolveu fazer pipoca.
Se não fosse o vizinho, se não fosse o filme que ele deve ter alugado na Blockbuster ali do lado de casa... Se não fosse a pipoca. Se não fosse a vida, moça, ah, se não fosse a vida.

Mas a vida foi. E eu fiquei, você ta vendo. Eu aqui, esse cobertor velho e esse papelão, que era a caixa da televisão que a gente comprou lá pro novo apartamento em Moema. E só.

Ah moça, se não fosse aquele cheiro de pipoca, moça... Te juro.

Porque o cheiro de pipoca me trouxe até aqui. Me levou do apartamento em Moema pra essa parede escura, que fecha esse prédio velho e interditado.

Esse prédio, moça, esse prédio era um cinema.

Você é muito nova pra lembrar, mas era, eu juro que era. Quando eu tinha a sua idade, um pouco mais, um pouco menos. Era um desses cinemas de rua, desses que a saída é lateral e da pra uma viela escura e suja. Que nem essa.

E era tão bonito, o cinema. Era brilhante e era neon, e os cartazes ficavam lá em cima, em cima da avenida, em cima do mundo. Em cima da vida, moça, em cima de tudo, mostrando o Clark Gable, e a Ingrid Bergman e o James Dean, e o Humprey Bogart e a Monroe e a Bardot.

E iluminava o rosto das pessoas, moça. As pessoas na fila, as pessoas falando, as pessoas esperando. As pessoas vivendo, que é o que elas mais sabem fazer. Um dia aqui, um cinema lá, uma frase torta e uma bebedeira do outro lado da cidade. Uma viagem pro interior, uma briga com a namorada, as pessoas vivem, moça, elas vivem sempre, mesmo quando a gente não ta olhando.

A bilheteria ficava aqui do lado.

Ah, se você tivesse tempo, mais que todo o tempo do mundo até hoje e até depois, não ia ser tempo o suficiente pra ouvir da minha infância. Pra ouvir da minha vida sem peso, das minhas obrigações de ser feliz, das minhas contas atrasadas do jogo de bafo, do aluguel da roupa pra festa, do emprego e das mulheres nos filmes e nos gibis e nas séries de televisão, e só.

E desse cinema. Desse cinema que me puxou, no dia em que eu senti aquele cheiro de pipoca.

Porque me lembrou daqui, me lembrou a minha infância, a minha vida sem “v” maiúsculo, e eu tive que voltar. E voltei. Voltei pra ver, pra sentir, pra lembrar. Voltei por voltar.

Parei ali em frente, virando a esquina, onde ficava a entrada do cinema, com as grandes portas de madeira e as promessas de aventuras e romances do lado de dentro.

E olhei para o prédio vazio e capenga e lembrei de ser feliz.

Lembrei de não ter que trabalhar. Lembrei de não ter que combinar gravata com sapato. Ah, moça, eu lembrei de chegar em casa da escola e almoçar comida da mãe e dormir a tarde toda. Lembrei de fazer casa na árvore, que não tem hipoteca nem conta de luz, e lembrei de brincar de carrinho sem pagar IPVA. Lembrei de acordar com febre e não ter que ir pra escola. Lembrei de ter certeza, a mais absoluta certeza, de que nunca ia usar equação pra nada na minha vida.

Lembrei do cheiro de pipoca na entrada do cinema.

Da promessa de duas horas de diversão, de amigos e primeiras namoradas, coca-cola gelada e risos na hora errada. Lembrei da sala da diretora do meu velho colégio, e lembrei de filmes de guerra e dos gritos das atrizes dos filmes de terror.

E lembrei que lembrar dói muito.

As vezes, moça, as vezes é engraçado. A gente esquece de tanta coisa, não é? Eu tinha esquecido do cheiro do cinema, do cheiro da pipoca.

Eu tinha esquecido de pensar em ser feliz. A gente esquece, moça, a gente esquece de perguntar porque o sol é redondo, porque bater o pé dói mais no frio e porque a gente tem que morrer. Depois de um tempo, a gente esquece, e só lembra do dinheiro das crianças, do preço da gasolina e do próximo feriado.

A gente esquece que tem tanta coisa acontecendo no mundo, que a gente nem sabe. Tanta estrada pra correr, tanta fogueira pra acender, tanto beijo pra beijar, e um monte de coisas pra discutir, pra conversar. A gente esquece de tudo, e talvez seja melhor.

Mas eu lembrei. Eu lembrei do cheiro de pipoca. E agora não da mais pra mim.
Agora eu tenho que ficar aqui moça, e você tem que ir, e reza pra Deus pra não lembrar de nada no caminho pra casa, senão você acaba assim, que nem eu. Acordando com o sol na cara toda manhã, batendo de frente com uma parede fria e desgastada, tentando sentir de novo o cheiro da pipoca de um outro dia que já passou.