sábado, 17 de dezembro de 2011

Pedaços

Hoje tirei o dia pra te tirar da minha vida. Ah, se fosse assim tão fácil, não é, meu amor?
Comecei com coisas banais. Aquela blusa velha, de dormir, que você esqueceu aqui. Joguei no lixo. Apertei ela contra o peito um pouco, confesso, fechei os olhos e lembrei um pouquinho de uma ou duas noites que acordei do teu lado, você usando esse trapo colorido, meio rasgado, o rosto meio amassado de sono, e eu ali, sorrindo que nem bobo, procurando no mundo inteiro que habita minha cabeça por alguma coisa mais bonita do que seu mau humor matinal.
Depois veio aquele disco que eu enchi com musicas nossas, lembra? Lembrei daquela noite que a gente deixou rolando e dançou na cozinha, ao redor da mesa de jantar, apoiando um a cabeça no ombro do outro, e esquecemos a carne no forno, e quando a gente foi ver a cozinha tava cheia de fumaça. Foi pro lixo também.
Tinha aquele pente seu, aqui no armário do meu banheiro, também. Esse foi difícil. Lembrei de você na ponta dos pés, eu de cara fechada, emburrado porque a gente ia chegar atrasado. E você ali, se equilibrando no pé direito, mexendo o cabelo de um lado para o outro, ignorando minhas frases baratas de galanteador, falando que você não fica mais linda do que já é.
E aquele vestido vermelho seu, que acabava no joelho, e eu te fiz jurar que só usaria uma vez comigo, na noite que você preferisse, e que essa noite seria a mais especial da nossa vida. Peguei ele com cuidado, levemente consciente de que ele nunca foi usado, e, enquanto colocava ele pro lado, pensei que era meio triste que essa noite mais especial da nossa vida, a gente nunca tenha encontrado. Tai uma coisa que eu gostaria de ter guardado.
Depois veio seu sorriso. Sentei numa velha poltrona aqui da nossa antiga casa, peguei aquela foto sua que eu adoro, que você sorri que nem boba, nem me lembro do porque, e fiquei olhando pro teu sorriso até ele perder o significado. Demorou. Comecei esquecendo o jeito como o canto dos seus olhos se enrugavam e eles quase fechavam, quase que dando espaço, envergonhados de dividir o mesmo rosto com um sorriso tão bonito. Passou.
Teu olhar deu trabalho, confesso. Nenhuma fotografia consegue capturar um olhar, tive que dilacerar aquele jeito de você me olhar, entre o ciúme e a timidez, sozinho, sem ajuda. Pensei nele, pensei em como você me olhava quando eu te surpreendia com alguma besteira romântica, quando você desconfiava de mim e fingia um ciúmes de piedade, só pra me deixar feliz. Pensei naquele primeiro olhar, o primeiro em que eu reconheci alguma coisa a mais do que amizade. E pensei no ultimo também, carregado de tristeza, de arrependimento e de culpa. Mandei todos eles embora.
Depois vieram as memórias. Fui destruindo uma a uma. Tive a ajuda de uma ou outra companhia, algumas garrafas e um pouco de lágrimas. Mas, depois disso tudo, acho que consegui jogar fora também todos aqueles momentos juntos, aquelas tardes bobas vendo filme bobo na televisão, aquele abraço em silencio, deitados na cama, rosto no rosto, só sendo feliz e nada mais. Até das brigas foi difícil se livrar. O jeito como a gente se desentendia, ficava emburrado, os dois pensando a mesma coisa por horas, até algum ter coragem de dizer: “deixa de besteira.”
Mas acho que o mais difícil de tudo eu deixei pro final. Acho que o mais difícil, afinal, foi tirar essa parte de você que ficou em mim. Que não são os olhares, os sorrisos, os pentes ou os discos. O mais difícil, o que eu temo que talvez nunca vá embora, é esse pedacinho dentro de mim que mudou de nome. Tem teu nome agora, age como você, fala como você. Não sei o que fazer com ele. As vezes nem sei quem esta no controle. Esse texto aqui, nem sei se sou eu ou você escrevendo.
Não sei o que fazer com ele. Ele é seu, logo tem que ir embora, junto com todo o resto. Mas ele é meu também. Ele vive em mim, e como é que eu posso me livrar de mim mesmo?
Acho que é isso que é o que esse pessoal aí pelas ruas chama de amor né? A gente nunca se deu ao trabalho de entender, porque estava muito preocupado sentindo. Mas agora, acho que posso dizer, com o máximo de certeza que jamais vou poder, que amor mesmo é esse pedacinho de “eu-você-eu-você” que ficou grudado, e que, pro bem ou pro mal, fez de mim um pouquinho mais como você.

Mãos Entrelaçadas

Foi numa noite em Paris que eu a conheci. Eu tinha uns trinta anos, ela também, acho. Já faz tempo, essas coisas são difíceis de lembrar quando você tem a idade que eu tenho.
Eu estava sentado ali num cafezinho no Quartier Latin, sozinho, esperando meu café chegar. Devia ser um pouco antes do entardecer. Lembro que o lugar estava cheio, casais americanos e grupos de estudantes universitários parisienses blasé trocavam palavras em francês entre goles de vinho e tragos de cigarro. Todo o ambiente era meio amarelado, com luzes indiretas, bem europeu, assim. Nevava um pouco lá fora. Eu me concentrava no meu livro, estava lendo alguma coisa grega, não lembro se Platão ou Sófocles. Eu gostava muito de ler, naquela época. Hoje não consigo mais, nem com esses óculos imensos que eu uso. Da muito trabalho. Ser velho da muito trabalho.
Mas naquela época eu era novo. E estava lendo Platão. E ela entrou.
Nunca vou saber dizer se o arrepio que eu senti foi o vento gelado invadindo o ambiente aquecido do café ou a visão daquela mulher. Um vestido vermelho, meia calça preta, cachecol e um gorro. O cabelo meio repicado caia, assim, de dentro do gorro, sabe? Ia escorregando de dentro até um pouco abaixo do ombro. Foi amor a primeira vista, meus amigos, amor a primeira vista. Ela olhou em volta um pouco (seus olhos verdes, ah, as morenas de olhos verdes), escolheu uma mesinha de um lugar do outro lado da sala e sentou. E eu não ia falar com ela, juro que não. Sempre tinha sido um homem fiel, e nunca fui muito bom em abordar mulheres, ainda mais as francesas. Mas aí ela acendeu um cigarro e puxou um livro. O mesmo que o meu. Sófocles. Não tive escolha.
Olha, não lembro o que eu falei nem como eu consegui lembrar das minhas aulas de francês da faculdade, só sei que, quando eu fui ver, estávamos os dois discutindo a dramaturgia grega e seus efeitos no mundo moderno, e daí pra falar de amor, vocês sabem, é um pulo. Ah, vocês não sabem? É que hoje em dia ninguém fala de dramaturgia grega, né? Ah, ninguém fala de amor também? Bom, naquela época falavam, e a gente começou a falar de amor. Não lembro muito do que a gente discutiu, não só por causa da minha idade, mas principalmente por que eu não conseguia me concentrar muito no que ela falava, só no jeito que a boca dela se mexia, e na forma como os olhos dela se fechavam, assim, só um pouquinho, quando falava alguma coisa que julgava importante. Ah, meus amigos, se vocês pudessem ter visto...
Não lembro quem sugeriu uma volta pela cidade. Acho que fui eu. Ela hesitou um pouco, mordeu os lábios (ah, menina, menina) mas aceitou. Pagamos e fomos andar por Paris.
O sol estava se pondo. Vocês já andaram em Paris ao pôr-do-sol com uma mulher maravilhosamente linda que acabaram de conhecer e se apaixonar? É uma coisa que todo homem deveria experimentar.
Andamos e falamos de tudo o que você possa imaginar. Lembro até de uma discussão acalorada sobre a comida certa a se servir durante uma reunião clandestina de revolucionários. Eu era a favor de canapés, mas ela achava muito burguês.
Chegamos ali na beira do Sena. O Sena ainda existe? Faz tanto tempo...Ah, existe? Mas duvido que seja tão bonito quanto naquela época.
Chegamos ao Sena e começamos a andar na beira do rio. A luz do sol agora pintava timidamente de amarelo um ou outro ponto da cidade só, o alto de alguns velhos edifícios, e fazia as marolas do rio brilharem de um jeito fosforescente, parecendo...parecendo...sei lá, parecendo alguma coisa muito bonita que eu não consigo pensar agora.
E aí a gente foi atravessar a ponte. Ah, esse momento eu não esqueço não, rapazes. Posso esquecer de tudo nessa vida, nem sei quantos remédios eu tenho que tomar por dia hoje, mas não vou esquecer da hora em que a gente foi cruzar a ponte. O que? Que ponte que era? Sei lá que ponte que era, isso já faz quarenta anos, uma daquelas pontes que cruzavam o Sena, oras. Deixa eu contar a história.
Então, a gente foi atravessar a ponte, e eu lembro que ela dissertava a respeito da poesia concreta (lixo modernista ou vanguarda mal compreendida?), e aí ela parou ali no meio da ponte. Mas calma, não foi só isso. Ela foi ali até a beirada, virou de frente pra mim, e, assim, virada de costas pro água, colocou as duas mãos no parapeito da ponte e deu impulso. E sentou ali. Sentou ali no parapeito! Vocês entendem? Vocês entendem a beleza dessa cena? Paris ali no fundo, o rio passando fazendo aquele barulho que um rio faz quando passa, Paris acontecendo ali em volta da gente, e ela se virou, deu um pulinho e sentou no parapeito! E ficou balançando as perninhas ainda! Aí eu tive que beijá-la. Vocês entendem, né? Entendem.
Cheguei perto e interrompi o monólogo dela (porque, se você parar pra pensar, na verdade, verdade, a poesia livre é isso mesmo, agora, o quão livre a gente quer que ela seja?). Não tinha encostado nos lábios dela ainda, fiquei só com a boca ali, do lado da boca dela, e ela parou de falar. Parou de falar e entrelaçou os braços entre meu pescoço. Sabe, quando elas fazem isso? Apóiam um braço em cada ombro seu e entrelaçam o pulso atrás do seu pescoço?
E aí eu beijei ela. Olha, não vou nem tentar descrever pra vocês, porque vai ser uma perda de tempo. Só vou falar isso: Não sei o que me deu naquele momento, que eu abri os olhos, só por um segundo, ali, no meio do beijo. Eu sei, eu sei, não é muito romântico, mas eu precisava ter certeza de que tudo aquilo era real. E tinha acabado de anoitecer. Naquela época, não sei hoje, mas naquela época a Torre Eiffel costumava ficar toda iluminada com o cair da noite. Se eu falar pra vocês que no momento que eu abri os olhos a Torre Eiffel se iluminou todinha, vocês acreditam? Pois é verdade. Ali estava eu, beijando aquele anjo, aquele sonho europeu em roupas de frio, e ali na minha frente tinha o rio sena, com seus barquinhos restaurantes iluminados passando pra lá e pra cá, e a neve fininha caindo na cidade, e, lá, quase no horizonte, a Torre Eiffel brilhava. Brilhava! Olha só, fiquei até arrepiado, não gosto de lembrar dessas coisas.
Não sei quanto tempo a gente ficou ali naquele beijo. Pode ser durado uns vinte anos, nunca vou saber. Mas eu sei que acabou. Sei que acabou porque eu me afastei e ela desceu do parapeito (outro pulinho, meu Deus, outro pulinho) e eu vi que ela chorava. Perguntei o que
tinha acontecido. Ela olhou pra mim com aqueles olhos vermelhos e verdes e disse que era casada. Eu também era (“eu sei, eu sei, eu já imaginava”). Ficamos ali se olhando em silêncio.
Eu disse que era brasileiro, que estava em Paris a viagem só, que ia voltar na semana seguinte (“eu sei, eu sei, eu já imaginava”) e voltamos ao silêncio.
E em silêncio caminhamos de volta a vida real. Ela morava ali perto do café.
Deixei ela na porta de casa, me aproximei para um ultimo beijo mas ela me afastou, sem dizer nada. Olhei pra baixo e me virei para ir embora, quando ela disse: “São Paulo, né?”
Eu perguntei “O que?”
“Você é de São Paulo, não é?”
Eu fiz que sim. Ela sorriu, se aproximou e sussurrou no meu ouvido: “qualquer dia desses passo na tua cidade, e te encontro num café.” Roçou os lábios nos meus uma ultima vez e virou as costas, não sem antes deixar escapar uma ultima fungada.
E é por isso que eu estou aqui, meus amigos.
Desde que voltei pra cá, toda semana eu passo em um ou dois cafés parecidos com aquele, parecidos com esse, procurando meu amor parisiense. Fico, leio esse livro aqui do Platão, o mesmo que eu estava lendo naquela noite, e espero. Tenho feito isso a mais de quarenta anos. Eu sei, eu sei, vocês já estão fechando, eu estou indo embora. Não foi dessa vez. Mas um dia, meus amigos, um dia ela vai entrar por aquela porta. Ou por alguma outra porta de algum outro café. E a gente vai terminar aquele assunto da poesia concreta.

Os garçons olhavam em silêncio enquanto o velho fechava seu livro e, com dificuldade, se levantava da cadeira para ir embora. Quando ele saiu e desapareceu na noite, Patrícia, a mais nova das garçonetes, não conseguiu segurar um soluço.
-Que história triste.
-É, o amor é uma coisa engraçada, né? – Disse Paulo, o barman, meio sem graça.
Todo mundo ficou ali parado um tempo, sem conseguir juntar a coragem de continuar arrumando as coisas e fechar o bar. Foi aí que entrou uma velhinha pela porta da frente.
-Desculpe, senhora, estamos fechando...
-Ah, me desculpa viu, estou procurando alguém. Um homem, mais ou menos a minha idade, devia estar lendo um livro. Ele não esteve aqui hoje não, né?
Silencio geral. A Patrícia emitiu um som esquisito, entre a risada e o choro, e saiu correndo pro banheiro.
Foi o Paulo que tomou coragem pra perguntar:
-Desculpa, mas...Você não é a moça francesa, é?
Até o vento parecia ter prendido a respiração. A velha olhou em volta, para todos os funcionários de boca aberta do café. Fechou os olhos, apertou-os com força e deu uma risada.
-Ai, meu Deus, foi essa a história que ele contou dessa vez?
Olhares intrigados.
-Meu marido é um escritor falido. Tentou a vida inteira publicar um romance e nunca conseguiu. Escreve mal que dói, coitado. Mora aqui por perto. Toda semana ele vem em algum lugar desses e conta uma história de um dos seus livros engavetados. A favorita dele é a da moça francesa que sobe no parapeito. Foi essa que ele contou, né?
Ninguém falou nada.
-Ai, ai, desculpa viu? O coitado nunca saiu do estado de São Paulo, e vem encher o saco de gente de bem que nem vocês, que só quer trabalhar e ir pra casa. Ele foi embora, foi? Deve estar chegando em casa agora, então. Desculpa incomodar, viu?
E, sem dizer mais nada, a velha deu meia volta e saiu pela porta.
Todos em silêncio. Quando alguém ia fazer algum comentário, Patrícia voltou, limpando as lágrimas.
-Onde está ela? Era a moça mesmo? Era ela, a francesa? Ela encontrou com ele?
Foi Paulo que, depois um longo silêncio constrangedor, passou os braços pelo ombro de Patrícia, abriu um grande sorriso e disse:
-Ela mesmo. O Marcos foi com ela na rua, encontraram o velho ali na esquina. Ele disse que foi lindo os dois se reencontrando.
Patrícia virou para o Marcos, encantada e perguntou:
-Foi mesmo, foi mesmo?
Marcos, sem graça, entrou no jogo:
-Foi, sim. Precisava ver, deram um beijo desses de cinema. Ela na pontinha do pé, ele segurando o cabelo dela, uma mão na cintura. Beijo de cinema.
-E ela entrelaçou os braços ao redor dele?
-Entrelaçou, entrelaçou.
Patrícia não conteve o choro de novo, e, com o rosto dividido entre o sorriso e as lágrimas, começou a ajudar o pessoal a limpar o café para o dia seguinte.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Quem sabe um dia

E quem sabe um dia, numa tarde chuvosa e fria, será que a gente não conseguiria, transformar tudo isso em poesia?

E sentar e rir e relembrar, no meio disso tudo até encontrar, com um pouco de vergonha no olhar, uma forma de se perdoar?

E olhar pra trás com um carinho, que ficou pelo caminho, assim, pra não perceber sozinho, como tudo foi mesquinho?

De repente até dizer, sabe, eu fiz por merecer, e quem vai responder, deixa disso, já passou da hora de esquecer...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Eu Vou Guardar

Teu sorriso congelado
No porta retrato
Eu vou guardar
E ninguém pode tirar de mim

O teu beijo, teu olhar
Teu jeito louco de me amar
Eu vou guardar
Bem perto de mim


Aquele jeito de você se arrumar
Na frente do espelho, mexendo no cabelo
Na ponta do pé direito

Aquele jeito de você me olhar
Com a cabeça de lado, O seu rosto apoiado
Em cima do meu peito

Eu vou guardar
Vou guardar as tuas cartas
Tuas broncas tuas mágoas
Tuas mãos perto de mim

Eu vou guardar
Vou guardar a tua lembraça
Vou deixar ela de herança
Para quando eu for feliz

Um olhar desajeitado
Um pouco sério, um tanto ousado
Eu vou guardar
E ninguém pode tirar de mim

Aquela marca no teu braço
E quando você me deu um abraço
E avisou
Meu amor, meu amor chegou ao fim

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Vai Chover

Vai chover.
Não importa o quanto pareça bom o tempo agora, não importa o quanto o sol esteja brilhando. Vai chover.
E a chuva vai te derrubar, vai te levar ao chão, ao meio fio, largado, ensurdecido pela percussão das gotas pela cidade, em cada beco, em cada esquina, em cada lata de lixo.
E aí você vai olhar pra trás. Não se engane, você vai. Para os dias de sol, para as primaveras e os verões, com aquele olhar triste de velhos atores de cinema, aquele olhar dos adultos, e você vai ter que saber lidar com isso e fingir que está tudo bem. E você vai descobrir que está crescendo. E vai descobrir uma porção de outras coisas também.
Vai descobrir que as pessoas passam por você, nesse mundo louco, deixando às vezes um sorriso, um jeito especial de te olhar, um aperto de mão, uma ligação perdida no celular. Um momento que poderia mudar tudo. E você vai pegando essas coisas e levando com você, e vai demorar pra descobrir o quanto elas pesam, no final.
E você vai descobrir que é difícil. É difícil carregar tudo nas costas. Às vezes da vontade de desistir. Às vezes, desistir é o caminho certo. Às vezes não.
Vai descobrir que existe beleza em qualquer coisa que colocamos os olhos. Uma lembrança, uma possibilidade, um momento que nunca aconteceu. Mas deixa eu te contar um segredo: A felicidade que você tem que buscar, a que vai mudar sua vida, aquela que implora dentro de você para ser encontrada, não é na luz do dia que você vai encontrar. No sol não se esconde nada. São os cantos escuros e chuvosos, nos momentos em que você só quer uma cama quente e um abraço, quando ninguém mais está do seu lado. É aí que ela vai aparecer. E você tem que estar preparado, senão vai perder o momento. Aquele brilho no meio da madrugada, aquele pontinho de luz, pode ser mais, muito mais que um farol de carro. Pode ser tudo aquilo que você estava procurando.
Você vai descobrir que pode um dia subir no trem da meia noite, e cruzar a madrugada, vendo o mundo passar na janela feito tela de cinema. Você pode achar o amor da sua vida, e escrever coisas engraçadas na areia da praia, deixar dois nomes numa árvore, embrulhados em um coração. Você pode desistir de tudo, viver de gorjeta em um bar de esquina, improvisando memórias em um velho violão. Você pode ser artista, pintar gordos rostos de turistas em Montmartre, reclamando do outono de Paris. Você pode.
Vai descobrir que tudo, absolutamente tudo, é pequeno demais para se importar. Os demônios e as quimeras são brinquedos de madeira, você vai ver. As coisas que realmente importam vão surgir, aos poucos, e você pode ficar surpreso. Pode ser algo que você nunca deu importância, algo que você estava preocupado demais para colocar seus olhos, para perceber. Pode ser alguém. Pode ser qualquer coisa. Mas isso também é pequeno demais.
Você vai descobrir que não existe nada no fim do arco-íris. E é aí, quando você chegar, cansado e esgotado, no fim da estrada de tijolos amarelos, e descobrir que ali não tem nenhum pote de ouro, é aí que você vai ver que o tesouro eram as cores no céu, era esse grande arco que você seguiu até aqui. E nenhum ouro do mundo vai te deixar tão feliz quanto isso.
Mas, acho que, mais do que tudo, você vai descobrir que essa chuva, que pinta a cidade toda de cinza, que te gela até os ossos e te leva até o chão, também carrega tudo lá pra longe, e, um dia, em pouco tempo, você vai levantar os olhos pro céu e vai ver que o sol apareceu. E aí, quando você baixar o olhar a sua frente, vai ver que a cidade não é mais a mesma. Vai ver que a chuva levou um monte de coisas embora, e trouxe coisas novas também. Só que ninguém notou. E é engraçado, porque assim de uma hora pra outra, você percebe que o maior dos temporais pode ter acontecido só dentro de você.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Vaga-Lume

São pequenos lapsos de insanidade, ou um olhar mais demorado em direção ao infinito. Qualquer coisa de fora do comum, na verdade.
Uma prosa mal escrita em um momento de tristeza, talvez.
Mas a vida é, no fim das contas, isso mesmo. Os breves momentos de clareza e lucidez, que não podem ser capturados, como pequenos vaga-lumes atravessando a noite lá longe. Você pode vê-lo, mas não pode tocá-los. Ou uma stripper barata, que funciona da mesma forma que o vaga-lume.
Porque, afinal de contas, ninguém sabe o que esta fazendo nessa festa aqui. Tem espaço pra todo mundo, bastante bebida, tristeza, um pouco de magia, sorrisos, traições, livros e ligações perdidas no celular. Tem alegria também, tem tudo isso. Mas a gente precisa desses pequenos vaga-lumes, porque a verdade é que não é aniversario de ninguém. Não é um casamento, bodas ou despedida de solteiro. E chega uma hora na festa em que você quer conhecer o dono da casa, quer saber quem ta pagando por isso tudo, e aí é chato, porque todo mundo é amigo de amigo de alguém, e ninguém sabe muito bem o que ta acontecendo.
Mas é nessa hora que você se apóia naquele canto só seu, com um copo de bebida na mão e aquela tristeza que é só sua e de mais ninguém, e você vê. Ali, do lado de fora da janela, perto do mato escuro e da estrada, aquele pontinho iluminado. Mas nem tenta chegar perto, não dá. Ele rodopia um pouco, faz que vai entrar pela janela (as vezes até entra, mas fica pouco tempo) e vai embora, e você não sabe se ele vai voltar.
Mas não fica assim não, limpa esses olhos, levanta essa cabeça. Porque o mais legal de tudo é que, quando ele apareceu brilhando no escuro, quase ninguém viu. Tinha gente ali, do lado dele, conversando e dando risada e assinando papéis de divórcio, e você lá de longe é que viu o vaga-lume. E é legal pensar nisso, pô. Só não tenta ir lá fora e alcançar ele. Você pode vê-lo, mas não pode tocá-lo. Como uma stripper.
E não tem porque não aproveitar a festa, também, né? Já que você ta aqui...
O legal (mas também é triste, se você parar pra pensar) é que todo mundo vai embora uma hora. E ta sempre chegando mais gente também. Mas aí, quando chega sua hora e você se vê caminhando em direção a porta, e você não faz idéia do que tem ali fora, porque você nem lembra como chegou na festa, você lembra do vaga-lume. E tem muita gente que vai embora sem saber do vaga-lume, e isso deve dar medo pra caramba. Mas você ta ali, girando a maçaneta, pronto pra sair, o suor escorrendo pelo canto do rosto. E aí vem aquele sorriso no seu rosto, porque você sabe o que você viu.
Você sabe, ao abrir a porta e dar de cara com esse infinito escuro e vazio que é o outro lado, que em algum lugar ali no meio dessa imensidão, rodopiando e indo pra lá e pra cá, tem um pontinho de luz voador, e, quem sabe fora da festa, a gente não consegue encostar nele e ver do que ele é feito?

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Thomas

“Oi.”
A voz vinha de trás da porta do meu quarto. Era o terceiro chamado. Eu olhava fixamente para a maçaneta.
“Oi.”
Quatro. Eu morava sozinho. Eram quatro da manhã.
“Oi.”
Cinco. Eu hoje estou na casa dos trinta anos, noivo, para casar mês que vêm. Ninguém ainda desconfiou da minha plena felicidade. Nenhum fantasma do meu passado veio bater na porta.
“Oi.”
Seis. Quando eu era pequeno, eu queria ser cowboy. Depois jogador de futebol, depois roteirista de novela. Sou engenheiro.
“Oi.”
Sete. A maçaneta ainda me encara, e eu não me atrevo a desviar o olhar. Leve, quase que imperceptivelmente, ela começa a girar.
“Oi.”
Oito. Não faço a menor menção de ir em direção a porta. Eu sei o que me espera do outro lado, eu sei quem está lá. Eu não quero que ele entre.
“Oi.”
Nove. É agora. A maçaneta termina de girar. Ouço o rangido desagradável da porta, e ela começa a se mexer.
“Oi.”
Dez. Ele está aqui.
“Oi, Thomas. O que você está fazendo na minha casa?”
Ele não mudou nada. Sem me levantar da cama, me viro para o espelho. Nem deve me reconhecer mais.
“Você mudou.”
“Você não, Thomas.”
“Porque eu mudaria?”
Porque eu mudei, Thomas. Porque eu mudei e você foi embora.
“O que você quer aqui?”
“Eu quero saber como você está.” Ele se aproxima, bem devagar. Hesito. Escorrego um pouco para o lado na cama. “Posso me sentar?”
“Pode.”
Ele senta e me olha. Tem oito anos de idade, a mesma idade que eu tinha quando o conheci, a mais de 20 anos atrás.
“O que você quer, Thomas?”
“Você vai casar?”
Mas alguma coisa mudou. Ele não se veste mais de cowboy, nem de jogador de futebol. E fala de um jeito diferente também. Tem olhos tristes.
“Vou sim.” Eu finalmente junto forçar para olhar pra ele. Seus olhos tristes.
“Por quê?”
“Porque é isso que as pessoas fazem, Thomas, elas crescem e se casam.”
“Eu não cresci. Eu não me casei. Eu estou aqui.”
Alguma coisa crescia dentro de um. Não era exatamente raiva, não era exatamente tristeza.
“Você está. Posso ver isso.” Era uma sensação de injustiça. Uma sensação de traição.
“Você não é um cowboy. Nem um jogador de futebol. O que você faz?”
“Eu sou engenheiro.”
“Você nunca me disse que queria ser engenheiro. Você queria ser engenheiro?”
“Thomas, eu...”
“Porque você é engenheiro se você não queria ser engenheiro?”
“Eu não...” Não sei como, mas de repente eu estava de pé, os olhos vermelhos, olhando para ele. “VOCÊ FOI EMBORA. VOCÊ FOI EMBORA E ME DEIXOU AQUI. O QUE EU DEVERIA FAZER?”
Ele não levantou, nem demonstrou qualquer tipo de reação.
“Eu sei.”
“VOCÊ SABE? ISSO É TUDO QUE VOCÊ TEM PRA ME DIZER?”
“Tudo isso faz muito tempo, e eu sinto muito. Mas, se você parar pra pensar, eu só fui embora porque você quis que eu fosse embora.”
“EU QUIS? EU QUIS? COMO EU IA SABER? EU ERA UMA CRIANÇA, THOMAS! UMA CRIANÇA! EU SÓ TINHA VOCÊ, E VOCÊ SÓ TINHA EU. E NÃO IMPORTAVA O RESTO DE TUDO, PORQUE A GENTE SEMPRE IA ESTAR JUNTO!”
“As pessoas crescem. Elas não tem mais tempo para os amigos de infância. Especialmente os imaginários.”
Fiquei olhando para ele. De repente, me sentei. Olhei para minhas próprias pernas e comecei a chorar.
“O que foi?”
Ele encostou a mão em meu ombro.
“Eu achei que a vida fosse outra coisa. Eu achei que, quando a gente crescesse, a gente não ia mais precisar imaginar uma vida melhor, porque a gente ia conquistar uma vida melhor.”
Ficamos ali, um bom tempo, sentados.
“Eu sei, eu sei...”
Ele me olhou com ternura e fechou os olhos, e eu entendi.
Não sei quanto tempo se passou, mas ele se levantou em algum momento e segurou minha mão.
“Eu sinto muito. Por todo esse tempo.”
Eu balancei a cabeça.
“Bom...Até...”
Levantei a cabeça, ele estava com a mão na maçaneta.
“Thomas.”
“Sim?” Ele parou, de costas para mim.
“Você não pode ficar? Só mais um pouco?”
Lentamente, ele virou a cabeça e eu pude ver seus olhos vermelhos, marejados.
Depois se virou e fechou a porta.

domingo, 31 de julho de 2011

No Centro da Cidade

Toda noite os mesmos olhos afogados
No mesmo mar que eu fui encontrado
Por outros como eu

Em cada corpo um peso imenso
Em cada mente mil tormentos
Parecidos com o meu

Sombra luz cigarro e bebida
Passarela de memorias esquecidas
Que ninguém viveu

A meretriz chora palavras do poeta
Sentada bebe, já conhece essa festa
Esse mundo é tão seu

O velho homem busca na bebida
Um reflexo antigo de uma antiga vida
Uma vida que morreu

E as vezes um olhar cruza com o outro
Em um respeito mutuo pelos loucos
Que o mundo já esqueceu

E no fim da noite lagrimas e copos
Almas tristes arrastando os corpos
Porque o dia amanheceu

Jasmin

Tem nome de flor
Pois vai viver só de amor
Disse sua mãe
Linda jasmin

Apaixonada
Por mil contos de fada
Estrelas e luz
Linda jasmin

O seu principe achou
E se apaixonou
Ao som do luar
Linda jasmin

E o principe foi
Tão certo e viril
É tudo tão belo
Pra Linda Jasmin

Mas a vida passou
E a bebida encontrou
Seu homem tão belo
Linda Jasmin

No chão do seu quarto
Olhando pra cima
É um estranho que ve
Linda jasmin

De mão levantada
Ele esquece de si
Manchando a beleza
Da linda jasmin

No dia seguinte
Volta a ser principe
Mas foge da casa
Da linda jasmin

E volta o estranho
Terror sem tamanho
Espelha os olhos
Da linda Jasmin

Quando ele enlouquece
O principe esquece
Da história de amor
Com a linda jasmin

E se poe a pensar
Aonde que foi parar
Meu conto de fadas
A linda jasmin

Por favor me diz
O meu final feliz
Aonde foi parar
Pergunta....A Linda....Jasmin...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Sophia e a Música

Sozinha no seu pequeno apartamento, Sophia ouvia musica. Não era nenhuma musica que conhecia, sequer era ela que tinha colocado a musica para tocar. Não, a musica vinha de longe, de um apartamento vizinho, uma pequena janela lá no alto, no ultimo andar do prédio ao lado.
Um inconveniente, claro. Algum vizinho barulhento e sem consideração, pois já passava de meia-noite. Tudo extremamente desconfortável, não fosse por um pequeno detalhe.
A musica era linda.
Já não era a primeira nem a segunda vez que a musica invadia a casa e a vida de Sophia. Noite após noite, desde que se mudou para o pequeno apartamento na cidade grande, a musica começava, sempre no mesmo horário, sempre de madrugada. E sempre linda.
E, como sempre acontece com as almas que vivem de ilusão, Sophia de pôs a sonhar. Sonhava com o homem (seria uma mulher? Na cabeça de Sophia era um homem.) que ouvia aquela musica. Sonhava que ele tocava a musica só pra ela. Cada dia uma melodia diferente, sempre emocionante, sempre linda.
É, ele tocava pra ela, Sophia tinha certeza. Era um homem sério, um pouco mais velho, moreno. Se vestia bem, estava sempre sorrindo, mas por dentro era solitário. Passou por alguns maus momentos na sua vida amorosa e decidiu se afastar por completo de seus sentimentos. Passava os dias sozinho em casa, ouvindo musica. Escolhendo musicas para Sophia.
Noite após noite o homem se sentava entre seus discos e escolhia uma canção para Sophia, sempre no mesmo horário. E sabia que Sophia estava lá, a espera, na janela, ansiando por ouvir sua declaração de amor em escalas.
Sim, porque era uma declaração de amor, Sophia estava convencida.
Uma noite, Sophia percebeu movimento na janela de seu misterioso homem das musicas. Lá no alto, olhando o mundo através de sua pequena janela, uma silhueta masculina se apoiou na janela, recortada pela luz amarela que vinha do apartamento.
Era ele.
Sophia soube então que ele era tudo aquilo que ela sonhava. E como sonhava com ele! Noite após noite, sempre que ouvia a musica, Sophia se imaginava dançando com ele, conversando, fazendo amor ao som das lindas musicas que ele escolhia, só para ela, só para ela.
E resolveu tomar uma atitude.
Foi até o prédio do homem misterioso, contou as janelas e subiu até seu apartamento. Bateu na porta. Bateu mais uma vez. Na terceira batida, ouviu um barulho vindo do apartamento. E foi tomada por um estranho choque de realidade: Aquele homem não escolhia musicas para ela. Aquele homem sequer sabia que ela existia. Aquele homem, muito provavelmente, nem gostava de dançar! Não era moreno, não se vestia bem e não carregava um ar de misteriosa melancolia. Era só um homem que gostava de ouvir musica. Não. Sophia tinha um homem perfeitamente bom. O homem misterioso, que se vestia bem e era melancólico, e que escolhia as musicas só para ela. Porque afugentá-lo, trocar este maravilhoso homem pelo homem atrás daquela porta, de quem Sophia não sabia nada a respeito? Não. Sophia amava o homem misterioso. “Não, não quero te conhecer, homem da musica, do apartamento 142. Você vai mandar meu homem misterioso embora, e eu amo meu homem misterioso. Não, não vou deixar você matar meu sonho. Não enquanto ele for mais bonito do que sua realidade. E que isso valha para tudo na minha vida.”
Fechou a porta do elevador bem a tempo de ouvir o trinco se abrindo lá no fim do corredor.
Naquela noite, dormiu feliz, com o homem misterioso.

E Tomás, o homem do 142, um pequeno e atarracado homem que vinha perdendo seu cabelo já a algum tempo, abriu a porta e não viu ninguém do outro lado. Olhou para um lado, olhou para o outro, deu de ombros e fechou a porta, sem entender, disposto a não pensar mais naquele estranho acontecimento. Mas, naquela noite, sonhou com uma linda mulher que bateu na sua porta num belo dia de inverno, pronta para levar ele para bem longe de uma vida sem sabor e sem amor, onde a única coisa que realmente valia a pena era a musica que ouvia ao fim do dia.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Musica

Já que eu não escrevo nada novo a séculos, uma letra de musica que eu escrevi faz tempo, só pro blog não morrer:




She saw him for the first time
Just outside Ricky's Bar

Smoking and drinking
His back against his car


Her mother said "he's no good, don't go calling him tonight"
But everytime she saw his face, she knew he was alright

And everytime he looked at her
He'd think "she is the one"
And everytime he kissed her lips
She'd fall in love again


They got married in Semptember
And the rain was like a sign
There will be peace, said the wind
But the sun will never shine

May God have mercy
On the innocent and young
Who belive in love and sing
All those songs that can't be sung

And they lived and died together
Like two heroes in the war
But the love and all those feeling
Where left to die in Ricky's bar



They tried to warn them
It was too late
It had to happen
It couldn't wait

Love aways dies
Love cannot last
And now forever
Is in the past

It had to happen
I guess it's fate
When all the love, in the world
Can turn to hate

domingo, 27 de março de 2011

O Trem da Meia Noite

O Trem da Meia Noite

Um dia eu vou acordar no trem da meia noite, longe de tudo.
E eu vou andar pelos corredores e ver as pessoas, e todo mundo vai estar dormindo e eu vou ouvir o ruído abafado do trem cortando a madrugada.
E vou inventar uma história para cada figura que eu passar. O velho sozinho é um poeta louco caído em desgraça. O casal abraçado foge da família para casar em segredo.
E eu vou olhar pela janela, e vou ver neve. E pequenas casinhas com uma ou duas luzes amarelas acessas vão passar zunindo, e eu vou me perguntar quem mora ali, e vou achar tudo isso muito bonito.
Vou chegar no vagão-restaurante, e ele vai estar fechado. E eu vou passar pelas mesas vazias e ouvir o tilintar dos pratos e copos balançando com o trem, e vou achar isso bem bonito também.
E eu vou sentar no balcão do bar e fingir que falo com um barman britânico e misterioso, e vou pedir um Martini com uma voz ridícula.
E então eu vou levantar e começar meu caminho de volta. E vai ser bem tarde já, um pouco antes do amanhecer, mas bem escuro também. E eu vou sentir como se o mundo inteiro fosse o quarto de um menino entediado, e o trem que me leva pra longe circula entre a cama e a televisão e a porta, dando a volta no quarto do garoto-Deus que colocou a gente aqui e falou que ia ser bom.
Vou reparar nas pessoas na volta também, a maioria vai estar dormindo, mas algumas vão começar a acordar junto com os primeiros raios de sol, que atravessam as janelas de vidro em pequenos mosaicos formados pelos pinheiros que cercam os trilhos lá fora.
E eu vou chegar de volta ao meu lugar, abrir a cortina e olhar o chão branco de neve passando rápido e me ver refletido na janela, com um olhar bem diferente do que eu tenho hoje. E isso vai ser legal. Vai ser bonito. E o sol vai nascer e o dia vai começar. E eu nem vou lembrar direito para onde me leva esse trem. E eu acho que isso eu vou achar mais bonito e legal do que tudo.

É. Um dia eu vou acordar no trem da meia noite.

domingo, 23 de janeiro de 2011

De Sonhos Mal Acabados

Resolvi assistir a uns vídeos de minha infância. Minha tia, abençoada seja, comprou uma câmera lá pelo começo dos anos 90 para documentar os momentos de família daquela nova geração que acabava de ter filhos. Duvido que imaginasse que aquele menino cabeçudo e inquieto dos vídeos um dia ia pedir essas gravações emprestadas, buscando, no seu passado, a resposta para seu futuro. Pois minha tia, sem saber, documentou também os primeiros anos de minha vida. Mas eu peguei os vídeos e levei-os para casa. E voltei no tempo por uns segundos. Vi a casa de minha bisavó, que tinha um balanço complicado de montar, em que eu costumava brincar. Vi meu primo, hoje com 30 anos e trabalhando de gravata, inseguro e sorridente, do alto de seus doze anos. Vi meus pais, hoje tão distantes, dividindo um mesmo cômodo, nos olhos uma despreocupação que há muito tempo foi levada pelas responsabilidades da vida. Vi minhas bisavós, hoje falecidas, olhando ainda fascinadas para o mundo em volta, como o mesmo ar que olharam para este país ao chegar aqui no começo do século, em busca de sonhos e uma vida melhor. E, no meio disse tudo, me vi. Uma criança. Um menino de nem dois anos, andando meio atrapalhado, rindo de tudo.
Olhei bem nos olhos dele. Ele olhou bem nos meus. 1991 e 2010 separados por uma velha câmera. Eu pude quase sentir sua presença, perto de mim. Quem me dera! Teria tanto para lhe dizer.
E não me importa mais essa vida agora. Não me importa mais mil e uma desgraças que me aconteçam ou qualquer infelicidade que venha bater a minha porta. Não me importa, porque eu sei que, em alguma gaveta, em algum armário empoeirado, está lá. Esse pedaço de existência congelado no tempo. Um universo paralelo onde tudo é lindo e a vida é simples. Um mundo onde eu sou para sempre uma criança, sorridente e cabeçuda. Um mundo onde minhas bisavós ainda vivem. Um mundo onde meus pais ainda se amam. Um mundo onde meu primo ainda tem doze anos. Um mundo onde aquele velho balanço que ninguém sabia montar está lá. E quem vai dizer que não é real?
Você é feliz, menino Cesar. Para sempre. Divirta-se. Deixe as preocupações e as tristezas da vida para mim. Deixa comigo que eu cuido de tudo. Brinca com tuas bisas, corre pela casa. Curte tua família unida. Deixa o resto comigo. Estou aqui para cuidar de ti.