sábado, 26 de outubro de 2013

Doutor

Eu não sou louco, doutor, é sério. Eu era um cara feliz, um cara normal, que nem você. Te juro. É só que, depois de um tempo, não da pra viver em São Paulo e ser feliz ao mesmo tempo. Eu tentei.
Existe um limite para o número de vezes que uma pessoa consegue entrar em um vagão de metrô lotado e não morder o braço de outro passageiro. Uma pessoa só aguenta ser expelida de um trem por uma orda selvagem de novos passageiros uma dada quantidade, antes de bater a cabeça de uma velha contra a parede.
É sério. Eu não sou louco. Precisa mesmo dessa camisa de força? Ok, precisa.
É verdade, doutor. Não foi culpa minha. Você não ouviu aquele bebê chorando no ônibus. Qualquer um teria socado ele. Eu sou uma pessoa normal. Eu ando de ônibus a mais de vinte anos, a mais de vinte anos eu ouço bebê chorando no ônibus, sem fazer nada. Tem um limite. As pessoas só reparam nas coisas ruins que você faz. E todos os bebês que eu não soquei durante esses anos? Eu não ganho crédito por nenhum? Você soca um bebê uma vez e ganha uma reputação, é horrível.
E eu não queria matar aquela mulher. Eu não sou um assassino, juro. Eu só acho que não se deve atender um telefonema quando você é o próximo na fila do Subway. Isso não se faz. Desumana foi ela. Eu não tinha como saber que o molho de tomate naquela panela tava fervendo. Eu só queria afogar ela um pouco. O que? Os chutes na cabeça? Não, esses eu fiz mesmo. Esses eu defendo. Faria de novo.
Onde? Ah, remédio, da aqui. Tem água aí? Obrigado.
Eu não sou louco mesmo doutor, falando sério. Eu só acho que, quando o seu vizinho vai viajar e esquece o despertador programado para as 6 da manhã, e ele fica tocando, tocando, tocando, todos os dias, por meia hora, enforcar o yorkshire dele parece perfeitamente razoavel. Pense nas horas de sono que eu perdi. Ele pode comprar outro yorkshire. Eu já me comprometi a tirar o corpo do batente da porta, isso foi exagero, admito. Não precisava ter escrito aquelas coisas todas sobre a mãe dele na parede, com o sangue do bichinho, também. Eu errei, doutor, eu exagerei. Mas pense pelo meu lado. Ele vai comprar outro cachorro. Eu não posso comprar minhas horas de sono de volta.
E eu chamais cagaria no carro de um deputado, doutor, é sério. Eu não sabia de quem era o carro. Eu só queria fazer aquele alarme parar. Sabe, aquele alarme de corno que alguns carros tem? Uééééé, Uéééééé, Pi Pi Pi Pi Pi Pi, ééo ééo ééo ééo, uóóóóóóp, uóóóóp, bé bé bé bé bé? Eu só queria que alarme parasse. A vontade de cagar veio na hora, e eu achei bom deixar o recado. Eu nem sabia que ele era deputado.
É verdade, doutor, foi tudo uma série de inconvenientes, só isso. Poderia acontecer com qualquer um. Você também deve ter se irritado com panfleteiro, alguma vez. Eu passei vinte anos da minha vida calado, sem reclamar desses completos estranhos que enfiavam um pedaço de papel com a planta do novo prédio de Moema que eu preciso visitar embaixo do meu nariz, mas existe um limite. Existe um certo número de vezes que você pega o papel e sai andando e joga fora na próxima lixeira. Quando você passa desse limite, você faz o panfleteiro engolir o papel. É normal, poderia acontecer com você. O que? É, tudo bem, eu não precisava ter ateado fogo no papel antes, concordo. Mas eu estava tendo um dia ruim, doutor, só isso. Sério mesmo.
Já passou. Eu to bem agora. Pode me liberar, juro pra você. Não vou me estressar com nada. Não tem metrô quebrado que me tire do sério agora, nem grupo de amigo que anda lado a lado e fecha a calçada. Nem gente que fica parada do lado esquerdo da escala rolante vai me estressar, te juro. Ta tudo bem agora, doutor, sério.
Eu to melhor.

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