terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Story About Life, Beer and a Planet Called Siduri

Before the first intergalactic war, when there was no Free Galaxies or Union and the stars and planets where all new and sexy, there was a little place called Siduri.
Siduri was a little planet in the Diadem binary system, which rested in the Coma Supercluster, which, in turn, was located in the Coma Berenices constellation. I mention this in the hopes that you will search the story behind the myth of Queen Berenice II of Egypt, which gave the constellation it's name, because it's a nice story I don't have time to tell.
Anyway, Siduri was home to some exceptional forms of life, one of those being the Sidurians, nice, little five feet folks with anxiety problems and receding hairlines.
You see, the problem with the Sidurians was that, although relatively intelligent and sapient, they were not the dominant life form on Siduri.
No, there was another species. The evil Siris. Giant, crab-like creatures that were stronger and smarted than the Sidurians, they quickly enslaved the poor, balding creatures, forcing them into a dystopian society of forced labor and rigid thought control.
You see, just like in most dictatorships, the Sidurians were not allowed to discuss politics, sociology, philosophy, liberal arts, etc. Every writer who didn't write about the wonders of the Siris was executed. Every group of friends found to be talking shit about politics or the government was burned alive. Every philosopher who didn't exclusively praised the Siris ethics, morals and ways of life was hanged.
Now, this wasn't the first nor the last time that a certain species enslaved and took the freedom away from another species. Dystopian regimes were a reality in most societies across the universe, at one time or another, and, although they aren't the best, they usually do serve their purpose of inspiring great novels.
The problem with Siduri was that the Siris' government lasted a little more than your usual dictatorship. It lasted one and a half million years.
It finally ended when Siduri was discovered, by accident, by the Ninkas, sophisticated elven-like creatures from the planet of Ninkasi, also located in the Coma Supercluster. The Ninkas were famous both for being strong advocates for democracy and for the unique quality of the monocles and mustache combs they produced.
The Ninkas landed on Siduri in the hopes of expanding their society into this new, sunny planet, and what they found instead was a population of enslaved bald people, suffering in the hands of mean giant crabs. Because they believed in democracy, and because Ninkasi was crowded and Siduri was the only suitable place for them to expand into, the Ninkas immediately decided that they would help the Sidurians.
And so they did. Although the Siris were more developed than the Sidurians, they were no match for the technology of the Ninkasi, and, in no time, the giant crabs were wiped out of existence.
Siduri was free, and the Sidurian people welcomed the Ninkasi as equals, to inhabit their planet with them in the spirit of democracy, freedom and joy.
There was only one problem: One and a half million years is a long time to be living under an authoritarian regime. Time enough that a few evolutionary biology principles come into play. Notably this one: There were absolutely no interesting Sidurians left.
 You see, what happened was that, in the process of killing every Sidurian that dared discuss anything beyond what was permitted by the government, the Siris effectively molded the personality of the Sidurians, eliminating the "interesting conversation" gene from the Sidurian gene pool. Everyone that dared discuss something worthwhile, something that wasn't about soap operas or the weather, was murdered, and, slowly, the "interesting" trait of personality in the Sidurian people disappeared. What was left, by the time the Ninkasi people arrived, was five billion boring Sidurians to share the planet with.
That, naturally, drove the Ninkasis insane. They were sophisticated, smart, free thinkers. How the hell could they share a planet with dull, boring idiots whose only conversation topics were traffic jams and cake recipes?  
The answer was given by a young Ninkasi inventor named Silenus. After years locked in his lab, Silenus finally stepped out, carrying a bottle of a yellow, bubbly drink in his hands, announcing he had solved the communication problem between the Ninkasis and the Sidurians.
Word spread into the planet that this young, daring scientist had invented a magical drink that turned boring people into interesting folks, and that turned smart, sophisticated people into complete imbeciles. Sidurians and Ninkasis were both equally excited, and everyone wanted to try the new elixir.
And that was how beer came to be in the universe.



domingo, 20 de julho de 2014

Do Outro Lado do Universo




“Sabe, eu gosto de pensar que um dia a gente se encontra de novo,”
Foi assim que ela começou a despedida, você acredita? Piegas como uma letra de música da Disney. E não falo nem das músicas principais, falo dos temas de “O Retorno de Jafar”, ou “O Reino de Simba”. Aqueles que ninguém viu, cujos nomes eu só conheço porque ela adorava tudo que era da Disney, e me fazia ver junto.
“...um dia, em algum lugar do universo.”
E o mesmo papinho de universo, de estrelas, galáxia. Taí uma coisa que eu não vou sentir falta. Essa babaquice de átomos, prótons, nêutrons, o cacete a quatrons. Papo chato.
“Porque, pensa comigo, amor...”
E me chama de amor. Pode, uma coisa dessas? Em pleno fim de namoro?
“Eu e você, nós somos átomos. Em essência, não somos? A matéria é composta de átomos, e nós somos matéria. Então eu e você somos átomos.”
Olha lá, falei que ia chegar no papo de átomos! Não passava uma semana sem falar nisso, a chata. E eu ouvia, o pior é isso.
“E o tempo é infinito, amor, apesar de o nosso não ter sido. E um dia você vai morrer, e eu também, e a Terra também.”
Sente o drama.
“E vão passar anos, décadas, séculos, milênios, e tudo o que valia a pena ser lembrado vai ser esquecido, porque não vai ter ninguém pra lembrar. Inclusive a nossa história.”
Vai vendo, vai vendo. Essa mulher é foda.
“A queda do muro de Berlim e o nosso primeiro beijo. O onze de setembro e nosso aniversário de namoro. A Mona Lisa e a nossa música favorita. Tudo vai morrer, e vai morrer duas vezes. Vai morrer porque vai deixar de existir, e vai morrer de novo porque ninguém vai lembrar que existiu. Nem eu. Nem você.”
E eu aqui, querendo acabar a carta logo pra ir jogar bola com os amigos. Ela sempre foi prolifixa. Profilixa. Proxilifica. Ah, foda-se, ela sempre falou pra caralho.
“Mas os nossos átomos vão continuar por aí. Os meus e os seus. E, sabe, eu gosto de pensar... Com o tempo sendo infinito como é, todos os átomos vão se juntar de todas as formas possíveis, infinitas vezes. E sim, isso quer dizer que em algum momento da história os átomos que compõe a sua cara vão se juntar com os átomos que compõe a bunda da Jennifer Lopez para formar, sei lá, um meteorito, mas o ponto não é esse.”
Engraçadinha.
“O ponto é que... Estatisticamente falando, um dia os seus átomos vão encontrar os meus de novo. Em algum lugar do universo, alguns bilhões de trilhões de anos no futuro. Todos os átomos que hoje fazem de você quem você é, e todos os que fazem de mim quem eu sou, um dia vão se juntar, em uma supernova, um planeta, uma pedra, qualquer coisa. Talvez uma estrela cadente no céu de um planeta estranho, em uma galáxia tão longe, mas tão longe que a gente nem sabe que existe ainda.
E ali, naqueles dois ou três segundos em que a gente vai voltar a existir juntos no mesmo espaço e tempo, eu gosto de pensar que a gente vai se reconhecer. Eu gosto de pensar que, contra todas as probabilidades, naqueles três segundos em que os meus átomos encontrarem os seus e se abraçarem e riscarem o céu desse qualquer lugar estranho do outro lado do universo, alguma voz, de algum lugar, vai sussurrar “ei... eu conheci você. Um dia. Um dia a gente foi feliz”, e tudo vai ser como era antes, pelo menos por um tempo.
E vai ficar tudo bem. Pra sempre. Porque nada se perde de verdade, tudo se transforma e volta e recomeça de onde parou. O universo sabe o que faz. Vê se fica bem, tá? Eu te amo. Não esquece do nosso encontro do outro lado do universo. Eu te amo.”
Falei? Fala pra cacete. Foda. Deixa eu ligar pros broder e falar que não vou, porque jogar bola com os olho inchado não rola.
Essa mulher é foda.

sábado, 19 de julho de 2014

Zen



-Papai, olha a casinha que eu fiz com Lego!
-Que bonita filha. Mas que pena, um dia ela deixar de existir, e você também, e todo o universo também. Tudo é transitório, minha filha, não faz sentido construir nada. Vai, desmonta a casinha, apesar de que... Agora nem faz diferença. O próprio ato de desmontar a casinha já constitui em si uma ação, uma tentativa de moldar o universo através da escolha. E, como a gente sabe, não existe escolha, né? É a coisa da ilusão do livre arbítrio. Então destrói ou não, não faz diferença, filhota. O importante é você não se apegar a casinha, entendeu? Porque, assim como a sua vida, a do papai e a da mamãe, ela é transitória, e um dia vai morrer. E quando a gente se apega aquilo que morre, acontece o que? Isso mesmo, a gente sofre. Que foi?
A Clarinha já subia as escadas pro quarto, abrindo o berreiro, quando a dona Odete reclamou – Puta que o pariu, Zé Carlos. – antes de ir atrás da filha.
Mas o Zé Carlos tinha virado zen, e queria mais é que tudo se fodesse.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sophia e as Palavras



-Faltam palavras. – Sentenciou Sophia, decidida.
-Sim, eu sei. A emoção, as vezes, nos tira a capacidade de dialogar. De se expressar. – Devolveu o terapeuta, arrumando os óculos de pequenas lentes redondas.
-Não, não. Faltam palavras mesmo. No dicionário. – Sophia cruzava e descruzava os braços, inquieta.
-No dic... Como assim? – O terapeuta apoiou os dois cotovelos na mesa e inclinou o tronco para frente, sustentando o rosto pequeno e quadrado nos punhos fechados.
-Faltam palavras. Por exemplo, como se chama aquele silêncio quando, em uma piscina pública ou no mar, você mergulha?
-Hm... – Pensou. E então – Silêncio?
-Não. Silêncio é silêncio. Eu falo daquela sensação de desaparecimento, quando as vozes dos seus amigos e das famílias e das ondas e todo o resto em volta acabam num grito mudo. Aquele silêncio pesado, sabe? Que engloba tudo e parece que só existe você e o mundo e o mundo e você e é pra sempre. Como chama essa sensação?
-Não sei, Sophia, eu acho...
-Não tem nome! Deveria ter. Porque é uma sensação importante.
-Sei. Você acha que...
-Aquele alívio de quando você não sabe se tem saldo no cartão, e a maquininha da Cielo passa de “Processando” para “Transação Aprovada”, como chama?
-Porque não chamar de “alívio” mesmo, Sophia?
-Porque não é alívio! É muito mais! Não podemos ser tão genéricos. Não existem vários tipos de banana? Vários tipos de pão? E cada um tem seu nome. Os alívios também são muitos.
-Sei...
-Como eu te explicaria, em uma palavra, o momento em que uma memória besta, de dez, quinze anos atrás, me ocorre? Não uma memória importante, um aniversário ou um fim de ano. Um nada. Quando eu estou assim, de bobeira, vendo televisão, e de repente me vêm na cabeça um braço de sofá. Um braço de sofá bege e minha tia Emília tomando coca-cola em copo de festa. Uma memória que passou quinze anos escondida, dormente, irrelevante, e acordou, e eu lembro daquilo e nem sei por que. Como eu explico isso sem passar o dia inteiro procurando adjetivo?
-Sophia, Sophia...
-Não, tem mais! A angústia de escolher, no restaurante por quilo, entre duas opções mutuamente exclusivas, do tipo massa ou arroz com feijão. A tensão velada, em uma mesa de bar, quando só sobra uma isca de frango no prato da porção! Aquela primeira lufada de ar frio quando você sai do carro em uma viagem de inverno, e o barulhinho de pedrinhas e grama contra o seu pé quando você pisa no chão. “Crec, crec, crec, ali, filha, a recepção. Pede a chave do quarto e vai tomar banho, que nós vamos jantar na cidade”.
-Sophia, é sobre isso que você quer conversar mesmo?
-É! É sobre a sensação de acordar doente e não precisar ir pra escola! Quero falar sobre o geladinho do outro lado do travesseiro, sobre pegar no sono vendo filme e acordar no meio da noite com a televisão ligada! Quero uma palavra para a sensação de tomar banho quente com febre, e outra para aquela luzinha acessa, as três da manhã, no décimo quinto andar do prédio em frente ao da minha casa!  
-Sophia, sua mãe falou que você precisava conversar. É por isso que estamos aqui. Você não quer me falar sobre você?
-Não. Eu quero falar sobre os outros! Eu quero falar sobre tudo.
-É?
-É. E eu quero falar sobre aquele vento gelado que bate na praia as cinco da tarde, quando ainda o sol não foi embora, mas o calor vem e vai e as vezes esquenta, as vezes arrepia.
-E o que mais?
-E sobre tirar o sapato em casa de avó, e sentir carpete entre os dedos.
-Hm... – O terapeuta tirou os óculos e esfregou os olhos, cansado.
-Ah!
-O que mais, Sophia?
-Aquela sensação de virar todas as cartas do bafo na primeira batida, como chama?
-Não sei, Sophia... Não sei.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Reforma

Quero abrir um fórum público para discutir a reforma. Não a agrária ou a tributária, a reforma mesmo. Aquela com cimento, massa corrida, martelo e furadeira.

Minhas opiniões a respeito da reforma são, segundo alguns dos setores mais conservadores do país, radicais. Sou contra. Não acho que a reforma deva existir, nunca, sob nenhum pretexto, salvo se realizada em ambiente ermo e isolado de qualquer forma de vida senciente.

E aí você pergunta: “Mas Cesar, como vai fazer quando tiver infiltração, ou problema no encanamento?”. Não sei. Não é problema meu. O que eu sei é que o barulho de uma furadeira, ou o bate-bate rítmico (que só não chamo de hipnótico porque a hipnose ao menos é relaxante) do martelo são sons que ser humano nenhum foi projetado para aguentar.

Não, é sério. Eu acho que a reforma não deveria existir. Em nenhum momento da evolução humana nós tivemos a oportunidade de desenvolver um gene que pudesse lidar com o tipo de stress que enfrentamos quando, às nove da manhã de um sábado, o Doutor Almeida resolve começar a refazer a cozinha. Alias, pelo contrário. A natureza aperfeiçoou, durante milhões de anos, nossa espetacular habilidade de acordar e manter-se desperto com o menor dos barulhos, a fim de proteger-nos de potenciais predadores. Como poderíamos prever que, num futuro não muito distante, os barulhos não seriam predadores, mas o Doutor Almeida, e o único risco iminente seria sua morte suspeita, arremessado do décimo segundo andar por um vizinho insone que acordou cedo a semana inteira?

Uma amiga minha, que compartilha da minha agonia, propôs uma solução menos radical: A indenização. O morador que quisesse reformar seu apartamento deveria, obrigatoriamente, indenizar seus vizinhos de porta e parede. O dinheiro, presumivelmente, sendo usado para uma hospedagem de uma semana em um hotel, algumas sessões de terapia ou a contratação de um assassino de aluguel que não se importe em arremessar o Doutor Almeida do décimo segundo andar.

Mas eu ainda não acho suficiente. Dinheiro nenhum compensa a terrível sensação de ser acordado, aos poucos, martelada a martelada, pelo barulho de uma reforma que, você sabe, só vai parar na hora do almoço (e mesmo assim só por uma hora). Aquela horrível esperança morta que você acalenta; de que a próxima martelada vai ser a última. O coração humano é uma coisa incrível. O filho da puta martela, martela, ele martela desde as oito da manhã. De terça passada. E mesmo assim, naquele breve e abençoado silêncio entre duas marteladas, você ainda espera, você se atreve a sonhar: Talvez essa seja a última. Talvez tenha aca BAM. BAM. BAM.

Não. Chega de reformas. Chega do VRUUUUUUUM insuportável das furadeiras, chega do barulho de futucadas com a chave de fenda (e o cimento chovendo aos mil pedacinhos no chão, que é o seu teto, como aquele pequeno chuvisco que precede a tormenta). A verdade é que o ser humano ainda não evoluiu o necessário para fazer reforma. Não é uma ciência pronta para o uso prático.

Pense: A penicilina jamais seria aprovada para mercado se, como efeito colateral, levasse as pessoas diretamente a volta do vacinado lentamente à loucura. A internet nunca teria se expandido ao público em geral se, cada vez que você se conectasse, uma família ficasse sem dormir. Porque aceitamos a reforma? Porque não conseguimos enxergamos o absurdo na nossa frente, gritando, esperneando, martelando?
Chega. Que pesquisemos outras maneiras de se consertar infiltração, aumentar a suíte principal ou mudar a fiação. Reforma, nunca mais. Nunca. Nunca. Nunca Mais.


E agora eu vou dormir, nesse silencio abençoado, e amanhã de manhã ver se saiu alguma coisa no jornal sobre a morte do Doutor Almeida.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Pelo Amor de Deus

Deus voltou pra Terra, e, a pressas, uma reunião da ONU foi organizada. Reunido com os maiores líderes do planeta, o Senhor deu início a discussão.
-Porque reunião?
-Como assim, Senhor, po...
-Re-união. Passa a impressão de que eu já me encontrei com vocês antes. E eu nunca vi nenhum de vocês na vida.
-Ah... É só o nome que a gente dá.
Deus já sabia que, a partir dali, só ia vir merda.
-Tá. Vamo lá. Eu tenho aqui comigo a papelada que vocês me deram. Do começo: Fome.
-Sim, sim. Senhor, a fome é um grande problema, um dos maiores que a gente enfrenta.
-Tá. Legal. A gente vê como faz com essa coisa da fome. Aqui embaixo tem outro... Ob... Obesidade?
-Também, senhor. Obesidade tá entre as maiores causas de morte evitável no mundo.
-Hm.
-É um problema bem sério.
-Sei. Fome e obesidade.
-Isso.
-E vocês não sabem como resolver.
-É... É.
-Nem fodendo.
Burburinho na sala. O mediador pediu silêncio.
-Tá, essa eu vou deixar pra vocês resolverem. Que mais?
-Tem a coisa do risco de guerra atômica também, Senhor.
-Sei. Qual é o problema?
-Ah. O Senhor sabe das bombas atômicas já, eu presumo. Então. Tem todo o risco de...
-De algum de vocês jogar a bomba?
-É. Mais ou menos.
-Então nenhum de vocês joga a bomba.
-É, não é tão simples assim, tem que ver se...
-Porque todo mundo não joga a bomba fora, então?
Dessa vez o burburinho foi mais alto. Como assim, jogar as bombas fora? Deus, claramente, não estava ajudando.
-Vamos deixar essa pra mais tarde. – Pediu o mediador, cauteloso.
-Puta merda viu... Que mais?
-Tem... A coisa do... A questão da religião.
-Oi?
-A coisa da religião, dos ataques e tal.
-Oi?
-Sabe? O pessoal que mata em nome de Deus, a briga entre muçulmanos, cristãos e judeus, essas coisas...
-Vocês me meteram no meio dessa história? Não fode.
-Não, não você. Você é meio que o mesmo pra todo mundo... É a coisa do messias, do seu filho, que a gente....
-EU NEM TENHO FILHO!
-Eu sei, é que... Perai, não?
-EU LÁ TENHO TEMPO DE CRIAR FILHO? OLHA O TRABALHO QUE VOCÊS ME DÃO JÁ.
-Ah... Se não tem filho... É, vai ter que mudar bastante coisa então, aqui na Terra.
-Puta merda, galera. Tá tudo errado.
Deus passava a mão na cabeça, suspirando.
-Vamo lá, uma coisa de cada vez. O negócio dos atentados com religião. Aliás, qualquer atendado. Só para.
-Como assim?
-Para de matar gente. Só isso.
-Mas não tem como...
-Tem. Para. Para de matar. Matar é errado, porra. É tipo a coisa mais errada que existe.
-Pra ser justo, “não matarás” é o quinto mandamento só. – O mediador achou importante comentar.
-É? Não lembrava disso. Qual é o primeiro?
-Ahn... Amar a Deus sobre todas as coisas...
-Ah. Putz. Mal. Foi uma fase meio egocêntrica. Indiferente. Parem de se matar.
-Ok, ok. Parar de se matar. – O secretário batia tudo na máquina de escrever.
-Ok, que mais?
-A água. Tá faltando.
-Como, tá faltando? Eu coloquei água pra caralho aí na Terra.
-Mas tá acabando.
-COMO TA ACABANDO, MERMÃO? TEM UMA QUANTIDADE FIXA DE ÁGUA NA TERRA DESDE QUE O MUNDO É MUNDO. TA ACABANDO, COMO? TÁ INDO PRA OUTRO PLANETA A ÁGUA?
-Calma, Deus, pelo amor de... Calma. – Pedia o mediador.
-Porra. Faz menos filho, então.
-Menos filho?
-É. Faz menos filho que sobra mais coisa pra todo mundo. Tem muita gente nessa caceta.
Silêncio. Os representantes dos países se mexiam, constrangidos, na cadeira. Foi quando alguém teve coragem:
-Quando a gente fala do aquecimento global?

-Ah, foda-se. – Disse Deus, e foi buscar um whisky no armário de bebidas.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Ponte

O rei mandou dividir a cidade em duas. Do lado direito, tudo aquilo que era bem feito, só gente sem defeito, nenhum rosto suspeito, só os belos e as madames, gente de respeito. Do lado esquerdo ficaram os loucos, os viciados, os idiotas. Uma cidade inteira dedicada às derrotas. Até o príncipe era motivo de chacota. Do lado esquerdo, os perdedores, os sem amores e os que se perderam em suas dores. Do lado direito, os que venceram, do esquerdo, os que até do nome já esqueceram. À direita, senhoras e senhores, os maestros e médicos e donos de casas de penhores, à esquerda, passando a ponte e atravessando o rio, o sombrio, o mendigo passando frio. O vagabundo e o vadio, senhoras e senhores, os que se esqueceram de falar das flores, de olhos sem cores encarando o vazio.

Mas deu que a filha do rei na cidade direita se engraçou com um caixeiro bêbado e de origem suspeita. Cabelos desgrenhados, terno longe de ser fino, viajando sem destino, a honra longe de perfeita. Foi a comoção do ano, imagine que afronte! Logo a princesa, se apaixonar por alguém do outro lado da ponte.

O rei, bom e sábio e vivido como era, mandou fechar os portões, selou a ponte e reuniu os aldeões. “Ninguém daqui entra e sai nem transita para o lado esquerdo, até para minha filha eu achar um homem digno, sem bafo de bebida na garganta, olhos de ressaca azedos ou tinta de baralho entre os dedos. Alguém de caráter feito. Alguém, sem dúvida, do lado direito”.

E assim foi que o caixeiro, ao ficar sabendo do rei e suas loucuras, foi até a capela e fez mil juras. Jurou a bebida para fora de sua casa, e nas mesas de apostas nunca mais sentou. Aparou a barba e largou a vida de viagens, e na praça dos loucos só se falava de como ele mudou. Foi atrás de emprego, limpou a tinta do dedo, comprou terno á prestação e estudou a lógica e a razão. Tudo para conseguir de volta a menina para quem jurou seu coração.

Do outro lado do rio que corria e passava, a princesa da direita só chorava. Chorava um amor sem volta, chorava um pai sem coração, que nunca amou nem vai amar nem sabe o que é paixão. Chorava de revolta. Nas semanas e meses que seguiram, os pretendentes foram batendo menos e menos no portão, e para todos a princesa, com o mesmo olhar singelo, só falava o mesmo não. E voltava para o quarto, para a garrafa escondida no armário, para os encontros furtivos com homens sem honra e sem dinheiro, para esquecer um pouco a vida, mas só lembrava o tempo inteiro, nos abraços sem amor e nem paixão, de seu caixeiro, seu eterno forasteiro, para quem jurou seu coração.

Foi no último dia do ano, com os fogos explodindo contra um céu de violeta, que o rei juntou todos na praça e soou a clarineta. “Como sabido, no último dia da década, o rei gira a maçaneta” anunciou o poeta e voz do trono “e abrem-se os portões, para aqueles tortos que endireitaram, e os direitos que entortaram, trocarem de lugar e assim, seguir o reino em paz”.

E assim foi que, quando, do lado esquerdo se abriram as portas de madeira, o caixeiro, tomado de orgulho e expectativa, começou a caminhada pela ponte, rumo a sua nova vida.

Passando do outro lado, a princesa, de dentes podres e cabelo desgrenhado, era escoltada por dois homens de passos apressados. “Uma princesa fracassada era uma pena, pensavam os soldados, mas a lei é clara e não condena: gente sem graça e caída em desgraça pertence à esquerda, com o resto da massa e outros loucos de sua praça”.


E foi então que, ali, no ponto mais alto da ponte, com as luzes que explodiam a virada de outro ano clareando as duas figuras, caixeiro e princesa se enxergaram sob a lua. E por não mais que dois segundos congelaram, os rostos virando às costas enquanto os corpos se afastavam, se reconhecendo, e mais uma vez se amaram, o tempo que durou a caminhada apressada, para o outro lado do universo, sob o ruído alto da cidade, que chamava o ano novo e celebrava. Fecharam-se os portões e a ponte foi selada, e caixeiro e princesa, novamente separados pelo rio, contra dois portões se encostaram, e então fez-se o absurdo e os gritos e a loucura, porque o dia tinha acabado. Era meia noite, o novo ano havia chegado.