quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Reforma

Quero abrir um fórum público para discutir a reforma. Não a agrária ou a tributária, a reforma mesmo. Aquela com cimento, massa corrida, martelo e furadeira.

Minhas opiniões a respeito da reforma são, segundo alguns dos setores mais conservadores do país, radicais. Sou contra. Não acho que a reforma deva existir, nunca, sob nenhum pretexto, salvo se realizada em ambiente ermo e isolado de qualquer forma de vida senciente.

E aí você pergunta: “Mas Cesar, como vai fazer quando tiver infiltração, ou problema no encanamento?”. Não sei. Não é problema meu. O que eu sei é que o barulho de uma furadeira, ou o bate-bate rítmico (que só não chamo de hipnótico porque a hipnose ao menos é relaxante) do martelo são sons que ser humano nenhum foi projetado para aguentar.

Não, é sério. Eu acho que a reforma não deveria existir. Em nenhum momento da evolução humana nós tivemos a oportunidade de desenvolver um gene que pudesse lidar com o tipo de stress que enfrentamos quando, às nove da manhã de um sábado, o Doutor Almeida resolve começar a refazer a cozinha. Alias, pelo contrário. A natureza aperfeiçoou, durante milhões de anos, nossa espetacular habilidade de acordar e manter-se desperto com o menor dos barulhos, a fim de proteger-nos de potenciais predadores. Como poderíamos prever que, num futuro não muito distante, os barulhos não seriam predadores, mas o Doutor Almeida, e o único risco iminente seria sua morte suspeita, arremessado do décimo segundo andar por um vizinho insone que acordou cedo a semana inteira?

Uma amiga minha, que compartilha da minha agonia, propôs uma solução menos radical: A indenização. O morador que quisesse reformar seu apartamento deveria, obrigatoriamente, indenizar seus vizinhos de porta e parede. O dinheiro, presumivelmente, sendo usado para uma hospedagem de uma semana em um hotel, algumas sessões de terapia ou a contratação de um assassino de aluguel que não se importe em arremessar o Doutor Almeida do décimo segundo andar.

Mas eu ainda não acho suficiente. Dinheiro nenhum compensa a terrível sensação de ser acordado, aos poucos, martelada a martelada, pelo barulho de uma reforma que, você sabe, só vai parar na hora do almoço (e mesmo assim só por uma hora). Aquela horrível esperança morta que você acalenta; de que a próxima martelada vai ser a última. O coração humano é uma coisa incrível. O filho da puta martela, martela, ele martela desde as oito da manhã. De terça passada. E mesmo assim, naquele breve e abençoado silêncio entre duas marteladas, você ainda espera, você se atreve a sonhar: Talvez essa seja a última. Talvez tenha aca BAM. BAM. BAM.

Não. Chega de reformas. Chega do VRUUUUUUUM insuportável das furadeiras, chega do barulho de futucadas com a chave de fenda (e o cimento chovendo aos mil pedacinhos no chão, que é o seu teto, como aquele pequeno chuvisco que precede a tormenta). A verdade é que o ser humano ainda não evoluiu o necessário para fazer reforma. Não é uma ciência pronta para o uso prático.

Pense: A penicilina jamais seria aprovada para mercado se, como efeito colateral, levasse as pessoas diretamente a volta do vacinado lentamente à loucura. A internet nunca teria se expandido ao público em geral se, cada vez que você se conectasse, uma família ficasse sem dormir. Porque aceitamos a reforma? Porque não conseguimos enxergamos o absurdo na nossa frente, gritando, esperneando, martelando?
Chega. Que pesquisemos outras maneiras de se consertar infiltração, aumentar a suíte principal ou mudar a fiação. Reforma, nunca mais. Nunca. Nunca. Nunca Mais.


E agora eu vou dormir, nesse silencio abençoado, e amanhã de manhã ver se saiu alguma coisa no jornal sobre a morte do Doutor Almeida.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Pelo Amor de Deus

Deus voltou pra Terra, e, a pressas, uma reunião da ONU foi organizada. Reunido com os maiores líderes do planeta, o Senhor deu início a discussão.
-Porque reunião?
-Como assim, Senhor, po...
-Re-união. Passa a impressão de que eu já me encontrei com vocês antes. E eu nunca vi nenhum de vocês na vida.
-Ah... É só o nome que a gente dá.
Deus já sabia que, a partir dali, só ia vir merda.
-Tá. Vamo lá. Eu tenho aqui comigo a papelada que vocês me deram. Do começo: Fome.
-Sim, sim. Senhor, a fome é um grande problema, um dos maiores que a gente enfrenta.
-Tá. Legal. A gente vê como faz com essa coisa da fome. Aqui embaixo tem outro... Ob... Obesidade?
-Também, senhor. Obesidade tá entre as maiores causas de morte evitável no mundo.
-Hm.
-É um problema bem sério.
-Sei. Fome e obesidade.
-Isso.
-E vocês não sabem como resolver.
-É... É.
-Nem fodendo.
Burburinho na sala. O mediador pediu silêncio.
-Tá, essa eu vou deixar pra vocês resolverem. Que mais?
-Tem a coisa do risco de guerra atômica também, Senhor.
-Sei. Qual é o problema?
-Ah. O Senhor sabe das bombas atômicas já, eu presumo. Então. Tem todo o risco de...
-De algum de vocês jogar a bomba?
-É. Mais ou menos.
-Então nenhum de vocês joga a bomba.
-É, não é tão simples assim, tem que ver se...
-Porque todo mundo não joga a bomba fora, então?
Dessa vez o burburinho foi mais alto. Como assim, jogar as bombas fora? Deus, claramente, não estava ajudando.
-Vamos deixar essa pra mais tarde. – Pediu o mediador, cauteloso.
-Puta merda viu... Que mais?
-Tem... A coisa do... A questão da religião.
-Oi?
-A coisa da religião, dos ataques e tal.
-Oi?
-Sabe? O pessoal que mata em nome de Deus, a briga entre muçulmanos, cristãos e judeus, essas coisas...
-Vocês me meteram no meio dessa história? Não fode.
-Não, não você. Você é meio que o mesmo pra todo mundo... É a coisa do messias, do seu filho, que a gente....
-EU NEM TENHO FILHO!
-Eu sei, é que... Perai, não?
-EU LÁ TENHO TEMPO DE CRIAR FILHO? OLHA O TRABALHO QUE VOCÊS ME DÃO JÁ.
-Ah... Se não tem filho... É, vai ter que mudar bastante coisa então, aqui na Terra.
-Puta merda, galera. Tá tudo errado.
Deus passava a mão na cabeça, suspirando.
-Vamo lá, uma coisa de cada vez. O negócio dos atentados com religião. Aliás, qualquer atendado. Só para.
-Como assim?
-Para de matar gente. Só isso.
-Mas não tem como...
-Tem. Para. Para de matar. Matar é errado, porra. É tipo a coisa mais errada que existe.
-Pra ser justo, “não matarás” é o quinto mandamento só. – O mediador achou importante comentar.
-É? Não lembrava disso. Qual é o primeiro?
-Ahn... Amar a Deus sobre todas as coisas...
-Ah. Putz. Mal. Foi uma fase meio egocêntrica. Indiferente. Parem de se matar.
-Ok, ok. Parar de se matar. – O secretário batia tudo na máquina de escrever.
-Ok, que mais?
-A água. Tá faltando.
-Como, tá faltando? Eu coloquei água pra caralho aí na Terra.
-Mas tá acabando.
-COMO TA ACABANDO, MERMÃO? TEM UMA QUANTIDADE FIXA DE ÁGUA NA TERRA DESDE QUE O MUNDO É MUNDO. TA ACABANDO, COMO? TÁ INDO PRA OUTRO PLANETA A ÁGUA?
-Calma, Deus, pelo amor de... Calma. – Pedia o mediador.
-Porra. Faz menos filho, então.
-Menos filho?
-É. Faz menos filho que sobra mais coisa pra todo mundo. Tem muita gente nessa caceta.
Silêncio. Os representantes dos países se mexiam, constrangidos, na cadeira. Foi quando alguém teve coragem:
-Quando a gente fala do aquecimento global?

-Ah, foda-se. – Disse Deus, e foi buscar um whisky no armário de bebidas.