quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Repolho



-Você gosta de repolho? Eu adoro repolho, hahaha. É a minha única coisa estranha, juro.
Foi uma das primeiras coisas que ela falou pra ele. E, é verdade, ele achou esquisito, mas aquela altura ele já tinha visto seu sorriso, e percebido o jeito como ela prendia o cabelo em cima da cabeça quando ia fazer alguma coisa séria. Era tarde demais.
Deu que começaram a namorar, e até apelidinhos ridículos fizeram um pro outro (repolinho e repolinha, mas ele não contava pra ninguém). Quantas vezes não se pegou pensando, com a cabeça longe, na frente do computador do escritório, no jeito como ela ria, sozinha, deitada na cama com ele, ou na mesa da cozinha, na sala, vendo televisão, e falava: “Repolho. Até a palavra é engraçada, né? Hahaha, repolho”.
E ele ria com ela. E ria sozinho, no trabalho. Repolho. Era engraçada mesmo, a maldita palavra.
Foram morar juntos, casaram. Ele, ela e os repolhos, reais e linguísticos. Ela adorava cozinhar com repolho. Quase todos os dias, na mesa de jantar, era repolho com alguma coisa. Carne com repolho, Repolho refogado. Só de domingo que não tinha repolho, porque pediam pizza (teve a vez que entrou no quarto e pegou o flagra: ela, no telefone, sussurrando, “pizza de repolho não tem, né?”. Ficou quase o dia todo sem falar com ele, de vergonha).
-Vou chegar um pouco mais tarde hoje, tenho que passar no Dr. Márcio para pegar
Os exames, ok amor?
Foi a última frase despreocupada da vida dos dois.
Ela cuidou dele. Cuidou durante os quase doze meses em que ele foi diminuindo, em todos os sentidos. No final, dava até comida para ele na cama (sopa de repolho, a sua favorita). Ela sabe que provavelmente não foi isso, mas, na memória, as últimas palavras dele, já sem conseguir levantar da cama, foram “Hahaha. Repolho. É engraçado mesmo”.
E a casa ficou vazia.
Foi só quase um ano depois que ela teve coragem de entrar no quartinho onde ele trabalhava, às vezes, de casa. Com um suspiro, começou a juntar os papéis, os fichários, as canetas e os livros, e foi colocando tudo em caixas.
Parou na frente do computador. Hesitou. Hesitou, e hesitou mais um pouco, mas foi vencida pela imprudência, e abriu a tela do notebook.
Documentos, fotos, pastas, e, ali, no canto esquerdo, um numerozinho vermelho indicava 1 e-mail não lido.
Vencida, de novo, pela imprudência da saudade, ela clicou. Abriu-se a página inicial. Ele não usava aquele e-mail a tantos anos, que mensagem nova seria aquela?
Com os dedos trêmulos, ela direcionou o mouse até o botão “Caixa de Entrada” e, olhos fechados, clicou.
“Lose Weight Now With This Secret From Japanese Scientists.”
Era um spam. A última mensagem que seu marido recebeu era uma mala direta sobre perda de peso.
Frustrada, começou a fechar o notebook, mas parou na metade do caminho. Embaixo da mensagem não lida, uma série de e-mails da mãe dele. Olhou a data do último: 28 de Dezembro de 2012. Aquilo era de algumas semanas depois do começo de namoro dos dois. O que será que eram aquelas mensagens?
Já vencida e nocauteada pela imprudência, abriu a mais antiga, de 14 de Dezembro (o dia em que começaram a namorar)e, a partir dela, foi lendo, de uma em uma, até a mais recente.



De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Como assim, como faz pra repolho ficar gostoso? Você odeia repolho. Não podia nem sentir o cheiro que passava mal! Que ta acontecendo, filho?

Bjos,
Mamãe






De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Meu Deus, filho, que frescura, explica pra ela, ela vai entender. Quem ama faz sacrifícios. Vai passar o resto da vida comendo o que não gosta por causa de mulher?

Bjos,
Mamãe





De: Mãe
Para: Paulo Ricardo


Não deu certo do jeito que eu te falei pelo telefone? E se misturar na comida, com outra coisa? Vou procurar uma receita legal pra você, e te mando por aqui.

Bjos, Mamãe






De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Anx. repolho_ao_forno.pdf

Filho, estou mandando em anexo a receita. Tenta essa, fica gostoso.


Bjos,
Mamãe



De: Mãe
Para: Paulo Ricardo


Tentou com o tempero que eu te falei pelo telefone?


De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Ai, meu filho, então desiste. Se não não, não gosta. Nunca vai gostar. Acho que você tem que ver o que é melhor pra você.

Beijos,
Mamãe




De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Você não tem jeito mesmo, hein? Bom, boa sorte, então.

Beijos,
Mamãe



Devagar, ela foi abaixando a tela do notebook. Com um “click” baixo, o aparelho se fechou e apagou, esvaziando o quarto do “vruuum” baixinho que fazia o processador.
Em silêncio, levantou, terminou de recolher as coisas na caixa, apagou a luz e fechou a porta do quartinho.
Limpou os olhos, deitou a cabeça na cama e dormiu. E naquela casa nunca mais se comeu repolho.