quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Lembrar

E eu não aguento mais. Falar com você. Manter esse acordo cordial, essa troca de favores automatica. Eu não suporto os nossos beijos de despedida as oito da manhã, nem os de reencontro as seis da tarde. Eu não aguento o seu sorriso, e eu desprezo o seu abraço na cama.

Não é porque eu não te amo, é justamente o contrário. Eu não aceito que nossa vida virou essa paródia de sí mesma. Eu não suporto que seja tão fácil passar o dia longe de você, porque eu lembro de quando nem o nosso olhar se separava, quando doía, doía fisicamente, ficar longe de ti.

Teu sorriso sem sabor me incomoda porque espelha o teu riso do começo, o teu riso de alegria de verdade, aquele sorriso que você guardava só pra mim, não esse sorriso cansado de quem desistiu.

Cada beijo sem graça teu me machuca, porque me tráz de volta os nossos beijos de antes. Cada abraço leve teu me causa dor, porque me voltam ao coração todos aqueles abraços do começo, tão apertados que parecia que você e eu queriamos virar uma coisa só.

E viramos. Você e eu somos um, e agora você vem reclamar?Vem perguntar pra onde foi o meu amor? Porque teus gestos não me movem mais? Porque eu não te amo?
É claro que eu te amo. Eu não aguento a tua presença, eu não aguento falar com você, eu não aguento nem te ver, porque você é quem eu mais sinto falta. E, que droga, tudo o que você faz é me lembrar de você.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Vencedor



Aprendeu tudo o que precisava nos cursos de empreendedorismo, nas palestras sobre liderança e nas matérias da Exame.

Sua carreira não foi uma subida, foi uma escalada. Avançava de cargo da empresa como quem passa de fase no videogame. Em menos de dez anos, já era diretor executivo e tinha sala própria com vista para a Faria Lima.

A esposa jamais ganhou apelido. Aprendeu no workshop de interrelacionamentos pessoais que, para transparecer confiança e demonstrar afinidade, deve-se sempre usar o primeiro nome do interlocutor. Ela o chamava de "Amor", ele a chamava de Roberta.

Os filhos foram pra Disney, mas um de cada vez. Leu no Manual do Lider Nato, best-seller do mundo empresarial, que a recompensa individual é mais eficaz que a coletiva. Os filhos trocam fotos das viagens até hoje, discutindo em que brinquedo foram e qual gostaram mais, fantasiando como seria a viagem se todos tivessem ido juntos.

Estranharam ele no velório da Ofélia. O curso sobre Apresentação Pessoal e Engenharia Social ensinava a se apresentar sempre sorrindo, indiferente da situação. A Carminha, amiga da família e filha da Dona Ofélia, se ofendeu e levou pro pessoal o sorriso de orelha a orelha que ele ofereceu aos familiares na fila dos "meus pêsames".

Quando reencontrou um amigo de infância, na esquina do trabalho, recusou a oferta para um chopp no fim da tarde. Estabelecer a dominância na relação era importantíssimo, e ter a decisão do horário e local das reuniões era crucial. Marcou o chopp para o mês seguinte, num bar do outro lado da cidade, invertendo, assim, o paradigma da relação para o seu lado. O amigo não apareceu.

Mesmo assim, todo natal é recebido pela família como "o grande vencedor". "Esse venceu na vida". "Ta usando terno Armani, toma whisky importado todo fim de semana". "É um vencedor". Sorri, da oi para os tios, os cunhados e amigos da família, cumprimentando com a mão direita e cubrindo a mão do outro com a esquerda , sinal de afeto e superioridade moral, de acordo com a oficina de Interrelacionamentos de Sucesso que fez no Rio de Janeiro, custeado pela empresa.

Ele aceita os elogios, balança a cabeça, abre ainda mais o sorriso. Dos lados da boca, o lábio puxa, repuxa. Machuca, a mandibula começa a travar. O sorriso cada vez maior, agradecendo, contando, abraçando. É importante sorrir, sempre sorrir. Manter o contato visual conta muito, claro, e sempre oferecer a cadeira para o outro sentar. Sempre que for interrompido, é importante demorar de 3 a 5 segundos para tirar os olhos do que estiver fazendo, seja um livro, o computador, qualquer coisa. Mesmo que não se esteja tão ocupado. É de bom tom, estabelece a superioridade e tira o balanço do outro. Delegar tarefas, sempre com a expressão "vou precisar que você faça". Mais autoritária que a "você poderia fazer", mas menos agressiva que a "faça isso". Falar sempre um pouco mais alto que o outro, também conta. Mas sorrir. Acima de tudo, sorrir. Não se pode parar de sorrir. Nunca. Jamais. Se você quer vencer na vida, sorria.

Mesmo sozinho. Sorria antes de dormir. Sorria na privada. Treine o sorriso na frente do espelho. Sempre. Sempre. Sorria. Sorria. Sorria.