quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Ponte

O rei mandou dividir a cidade em duas. Do lado direito, tudo aquilo que era bem feito, só gente sem defeito, nenhum rosto suspeito, só os belos e as madames, gente de respeito. Do lado esquerdo ficaram os loucos, os viciados, os idiotas. Uma cidade inteira dedicada às derrotas. Até o príncipe era motivo de chacota. Do lado esquerdo, os perdedores, os sem amores e os que se perderam em suas dores. Do lado direito, os que venceram, do esquerdo, os que até do nome já esqueceram. À direita, senhoras e senhores, os maestros e médicos e donos de casas de penhores, à esquerda, passando a ponte e atravessando o rio, o sombrio, o mendigo passando frio. O vagabundo e o vadio, senhoras e senhores, os que se esqueceram de falar das flores, de olhos sem cores encarando o vazio.

Mas deu que a filha do rei na cidade direita se engraçou com um caixeiro bêbado e de origem suspeita. Cabelos desgrenhados, terno longe de ser fino, viajando sem destino, a honra longe de perfeita. Foi a comoção do ano, imagine que afronte! Logo a princesa, se apaixonar por alguém do outro lado da ponte.

O rei, bom e sábio e vivido como era, mandou fechar os portões, selou a ponte e reuniu os aldeões. “Ninguém daqui entra e sai nem transita para o lado esquerdo, até para minha filha eu achar um homem digno, sem bafo de bebida na garganta, olhos de ressaca azedos ou tinta de baralho entre os dedos. Alguém de caráter feito. Alguém, sem dúvida, do lado direito”.

E assim foi que o caixeiro, ao ficar sabendo do rei e suas loucuras, foi até a capela e fez mil juras. Jurou a bebida para fora de sua casa, e nas mesas de apostas nunca mais sentou. Aparou a barba e largou a vida de viagens, e na praça dos loucos só se falava de como ele mudou. Foi atrás de emprego, limpou a tinta do dedo, comprou terno á prestação e estudou a lógica e a razão. Tudo para conseguir de volta a menina para quem jurou seu coração.

Do outro lado do rio que corria e passava, a princesa da direita só chorava. Chorava um amor sem volta, chorava um pai sem coração, que nunca amou nem vai amar nem sabe o que é paixão. Chorava de revolta. Nas semanas e meses que seguiram, os pretendentes foram batendo menos e menos no portão, e para todos a princesa, com o mesmo olhar singelo, só falava o mesmo não. E voltava para o quarto, para a garrafa escondida no armário, para os encontros furtivos com homens sem honra e sem dinheiro, para esquecer um pouco a vida, mas só lembrava o tempo inteiro, nos abraços sem amor e nem paixão, de seu caixeiro, seu eterno forasteiro, para quem jurou seu coração.

Foi no último dia do ano, com os fogos explodindo contra um céu de violeta, que o rei juntou todos na praça e soou a clarineta. “Como sabido, no último dia da década, o rei gira a maçaneta” anunciou o poeta e voz do trono “e abrem-se os portões, para aqueles tortos que endireitaram, e os direitos que entortaram, trocarem de lugar e assim, seguir o reino em paz”.

E assim foi que, quando, do lado esquerdo se abriram as portas de madeira, o caixeiro, tomado de orgulho e expectativa, começou a caminhada pela ponte, rumo a sua nova vida.

Passando do outro lado, a princesa, de dentes podres e cabelo desgrenhado, era escoltada por dois homens de passos apressados. “Uma princesa fracassada era uma pena, pensavam os soldados, mas a lei é clara e não condena: gente sem graça e caída em desgraça pertence à esquerda, com o resto da massa e outros loucos de sua praça”.


E foi então que, ali, no ponto mais alto da ponte, com as luzes que explodiam a virada de outro ano clareando as duas figuras, caixeiro e princesa se enxergaram sob a lua. E por não mais que dois segundos congelaram, os rostos virando às costas enquanto os corpos se afastavam, se reconhecendo, e mais uma vez se amaram, o tempo que durou a caminhada apressada, para o outro lado do universo, sob o ruído alto da cidade, que chamava o ano novo e celebrava. Fecharam-se os portões e a ponte foi selada, e caixeiro e princesa, novamente separados pelo rio, contra dois portões se encostaram, e então fez-se o absurdo e os gritos e a loucura, porque o dia tinha acabado. Era meia noite, o novo ano havia chegado.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Ricardo

O telefone tocou, e o Ricardo, com muito esforço, ergueu o corpo do sofá e foi se arrastando, o edredom enrolado no pescoço feito capa de espadachim, até a escrivaninha.
-Alô?
-ALO? NÃO DESLIGA, EU SOU VOCÊ NO FUTURO. VOCÊ PRECISA...
-Ah, vai tomar no cu.
Ricardo voltou pro sofá e mudou de canal, porque passar domingo a tarde assistindo Eliana é foda, mesmo bêbado.
Mas no dia seguinte o telefone voltou. Ricardo largou as batatas fritas requentadas no micro-ondas e se arrastou até o móvel.
-Alô?
-PELO AMOR DE DEUS, ME ESCUTA, EU TO TE LIGANDO DO FUTURO, VOCÊ PRECISA....
*click. E Ricardo voltou para o sofá, porque ia começar o Falha Nossa, no Vídeo Show, e é sempre engraçado assistir celebridade fingindo que é gente de verdade.
No terceiro dia, ele já imaginava quem era. Interrompendo as vídeo cacetadas e o pudim de leite de caixinha, aquele toque irritante. Atendeu o telefone sem nem a cortesia do “alô”.
-Mano, me deixa em paz, pelo amor de...
-Ricardo?
-Ah. Oi mãe. Desculpa, pensei que era outra pessoa. Tudo bom?
-Tudo certo. Escuta, Cado, um moço ligou aqui hoje mais cedo, pedindo pra falar com você. Falou que era urgente, que ele era você no futu...
*click.
Filho da puta. Acabaram as vídeo cacetadas.
No quarto dia Ricardo resolveu conversar. Era isso ou tirar o telefone do gancho, e ele precisava do telefone pra pedir pizza.
-Alo.
-NÃO DESLIGA, NÃO DESLIGA.
-Não vou desligar.
-NÃO... Ah... Tá bom. Oi. Tudo bem?
-Fala cara.
-Eu sou você no futuro.
-Uhum.
-Escuta... Tenho que te falar um bagulho muito importante.
A voz do outro lado era séria, e realmente parecia a sua. Ricardo hesitou. Será? Será que podia mesmo...
-O que?
-É muito importante cara. Por favor, me escuta.
Será que, de alguma forma, o universo estava dando outra chance para ele? Uma chance de tirar sua vida daquela rotina? De, de repente, ligar para a Clara, tentar acertar as coisas, começar de novo? Conseguir o emprego de volta, parar de ir dormir às cinco da manhã todo dia?
Será que Ricardo tinha agora a oportunidade de ver seu futuro e fazer algo a respeito? Do outro lado daquela linha telefônica, poderia estar a resposta que tiraria sua vida daquele ciclo de tédio, cerveja quente e Cheetos? Uma luz, um guia, uma nova chance para começar, para ser de novo o Cado, aquele menino da faculdade com um sorriso bonito e bom de papo. Aquele menino, que agora não vai na reunião de dez anos de formado por vergonha da barriga e da vida.
-Tô escutando. Fala.
-Tem um carro cor de gelo parado aí na sua rua?
Ricardo afastou o telefone do ouvido e ficou olhando para o bocal. A voz do outro lado tentava conter o riso. Devagar, recolocou o aparelho no gancho, e pensou que era engraçado que as crianças de hoje em dia nem devem saber o que é “gancho” de telefone.
Pensou também que talvez fosse menos por causa da pizza e mais por causa da Clara que ele não tirava o telefone do gancho.

E voltou para o sofá, porque o Ratinho já estava abrindo o envelope de DNA e ele não queria perder.