quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sophia e as Palavras



-Faltam palavras. – Sentenciou Sophia, decidida.
-Sim, eu sei. A emoção, as vezes, nos tira a capacidade de dialogar. De se expressar. – Devolveu o terapeuta, arrumando os óculos de pequenas lentes redondas.
-Não, não. Faltam palavras mesmo. No dicionário. – Sophia cruzava e descruzava os braços, inquieta.
-No dic... Como assim? – O terapeuta apoiou os dois cotovelos na mesa e inclinou o tronco para frente, sustentando o rosto pequeno e quadrado nos punhos fechados.
-Faltam palavras. Por exemplo, como se chama aquele silêncio quando, em uma piscina pública ou no mar, você mergulha?
-Hm... – Pensou. E então – Silêncio?
-Não. Silêncio é silêncio. Eu falo daquela sensação de desaparecimento, quando as vozes dos seus amigos e das famílias e das ondas e todo o resto em volta acabam num grito mudo. Aquele silêncio pesado, sabe? Que engloba tudo e parece que só existe você e o mundo e o mundo e você e é pra sempre. Como chama essa sensação?
-Não sei, Sophia, eu acho...
-Não tem nome! Deveria ter. Porque é uma sensação importante.
-Sei. Você acha que...
-Aquele alívio de quando você não sabe se tem saldo no cartão, e a maquininha da Cielo passa de “Processando” para “Transação Aprovada”, como chama?
-Porque não chamar de “alívio” mesmo, Sophia?
-Porque não é alívio! É muito mais! Não podemos ser tão genéricos. Não existem vários tipos de banana? Vários tipos de pão? E cada um tem seu nome. Os alívios também são muitos.
-Sei...
-Como eu te explicaria, em uma palavra, o momento em que uma memória besta, de dez, quinze anos atrás, me ocorre? Não uma memória importante, um aniversário ou um fim de ano. Um nada. Quando eu estou assim, de bobeira, vendo televisão, e de repente me vêm na cabeça um braço de sofá. Um braço de sofá bege e minha tia Emília tomando coca-cola em copo de festa. Uma memória que passou quinze anos escondida, dormente, irrelevante, e acordou, e eu lembro daquilo e nem sei por que. Como eu explico isso sem passar o dia inteiro procurando adjetivo?
-Sophia, Sophia...
-Não, tem mais! A angústia de escolher, no restaurante por quilo, entre duas opções mutuamente exclusivas, do tipo massa ou arroz com feijão. A tensão velada, em uma mesa de bar, quando só sobra uma isca de frango no prato da porção! Aquela primeira lufada de ar frio quando você sai do carro em uma viagem de inverno, e o barulhinho de pedrinhas e grama contra o seu pé quando você pisa no chão. “Crec, crec, crec, ali, filha, a recepção. Pede a chave do quarto e vai tomar banho, que nós vamos jantar na cidade”.
-Sophia, é sobre isso que você quer conversar mesmo?
-É! É sobre a sensação de acordar doente e não precisar ir pra escola! Quero falar sobre o geladinho do outro lado do travesseiro, sobre pegar no sono vendo filme e acordar no meio da noite com a televisão ligada! Quero uma palavra para a sensação de tomar banho quente com febre, e outra para aquela luzinha acessa, as três da manhã, no décimo quinto andar do prédio em frente ao da minha casa!  
-Sophia, sua mãe falou que você precisava conversar. É por isso que estamos aqui. Você não quer me falar sobre você?
-Não. Eu quero falar sobre os outros! Eu quero falar sobre tudo.
-É?
-É. E eu quero falar sobre aquele vento gelado que bate na praia as cinco da tarde, quando ainda o sol não foi embora, mas o calor vem e vai e as vezes esquenta, as vezes arrepia.
-E o que mais?
-E sobre tirar o sapato em casa de avó, e sentir carpete entre os dedos.
-Hm... – O terapeuta tirou os óculos e esfregou os olhos, cansado.
-Ah!
-O que mais, Sophia?
-Aquela sensação de virar todas as cartas do bafo na primeira batida, como chama?
-Não sei, Sophia... Não sei.

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