quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Ponte

O rei mandou dividir a cidade em duas. Do lado direito, tudo aquilo que era bem feito, só gente sem defeito, nenhum rosto suspeito, só os belos e as madames, gente de respeito. Do lado esquerdo ficaram os loucos, os viciados, os idiotas. Uma cidade inteira dedicada às derrotas. Até o príncipe era motivo de chacota. Do lado esquerdo, os perdedores, os sem amores e os que se perderam em suas dores. Do lado direito, os que venceram, do esquerdo, os que até do nome já esqueceram. À direita, senhoras e senhores, os maestros e médicos e donos de casas de penhores, à esquerda, passando a ponte e atravessando o rio, o sombrio, o mendigo passando frio. O vagabundo e o vadio, senhoras e senhores, os que se esqueceram de falar das flores, de olhos sem cores encarando o vazio.

Mas deu que a filha do rei na cidade direita se engraçou com um caixeiro bêbado e de origem suspeita. Cabelos desgrenhados, terno longe de ser fino, viajando sem destino, a honra longe de perfeita. Foi a comoção do ano, imagine que afronte! Logo a princesa, se apaixonar por alguém do outro lado da ponte.

O rei, bom e sábio e vivido como era, mandou fechar os portões, selou a ponte e reuniu os aldeões. “Ninguém daqui entra e sai nem transita para o lado esquerdo, até para minha filha eu achar um homem digno, sem bafo de bebida na garganta, olhos de ressaca azedos ou tinta de baralho entre os dedos. Alguém de caráter feito. Alguém, sem dúvida, do lado direito”.

E assim foi que o caixeiro, ao ficar sabendo do rei e suas loucuras, foi até a capela e fez mil juras. Jurou a bebida para fora de sua casa, e nas mesas de apostas nunca mais sentou. Aparou a barba e largou a vida de viagens, e na praça dos loucos só se falava de como ele mudou. Foi atrás de emprego, limpou a tinta do dedo, comprou terno á prestação e estudou a lógica e a razão. Tudo para conseguir de volta a menina para quem jurou seu coração.

Do outro lado do rio que corria e passava, a princesa da direita só chorava. Chorava um amor sem volta, chorava um pai sem coração, que nunca amou nem vai amar nem sabe o que é paixão. Chorava de revolta. Nas semanas e meses que seguiram, os pretendentes foram batendo menos e menos no portão, e para todos a princesa, com o mesmo olhar singelo, só falava o mesmo não. E voltava para o quarto, para a garrafa escondida no armário, para os encontros furtivos com homens sem honra e sem dinheiro, para esquecer um pouco a vida, mas só lembrava o tempo inteiro, nos abraços sem amor e nem paixão, de seu caixeiro, seu eterno forasteiro, para quem jurou seu coração.

Foi no último dia do ano, com os fogos explodindo contra um céu de violeta, que o rei juntou todos na praça e soou a clarineta. “Como sabido, no último dia da década, o rei gira a maçaneta” anunciou o poeta e voz do trono “e abrem-se os portões, para aqueles tortos que endireitaram, e os direitos que entortaram, trocarem de lugar e assim, seguir o reino em paz”.

E assim foi que, quando, do lado esquerdo se abriram as portas de madeira, o caixeiro, tomado de orgulho e expectativa, começou a caminhada pela ponte, rumo a sua nova vida.

Passando do outro lado, a princesa, de dentes podres e cabelo desgrenhado, era escoltada por dois homens de passos apressados. “Uma princesa fracassada era uma pena, pensavam os soldados, mas a lei é clara e não condena: gente sem graça e caída em desgraça pertence à esquerda, com o resto da massa e outros loucos de sua praça”.


E foi então que, ali, no ponto mais alto da ponte, com as luzes que explodiam a virada de outro ano clareando as duas figuras, caixeiro e princesa se enxergaram sob a lua. E por não mais que dois segundos congelaram, os rostos virando às costas enquanto os corpos se afastavam, se reconhecendo, e mais uma vez se amaram, o tempo que durou a caminhada apressada, para o outro lado do universo, sob o ruído alto da cidade, que chamava o ano novo e celebrava. Fecharam-se os portões e a ponte foi selada, e caixeiro e princesa, novamente separados pelo rio, contra dois portões se encostaram, e então fez-se o absurdo e os gritos e a loucura, porque o dia tinha acabado. Era meia noite, o novo ano havia chegado.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Ricardo

O telefone tocou, e o Ricardo, com muito esforço, ergueu o corpo do sofá e foi se arrastando, o edredom enrolado no pescoço feito capa de espadachim, até a escrivaninha.
-Alô?
-ALO? NÃO DESLIGA, EU SOU VOCÊ NO FUTURO. VOCÊ PRECISA...
-Ah, vai tomar no cu.
Ricardo voltou pro sofá e mudou de canal, porque passar domingo a tarde assistindo Eliana é foda, mesmo bêbado.
Mas no dia seguinte o telefone voltou. Ricardo largou as batatas fritas requentadas no micro-ondas e se arrastou até o móvel.
-Alô?
-PELO AMOR DE DEUS, ME ESCUTA, EU TO TE LIGANDO DO FUTURO, VOCÊ PRECISA....
*click. E Ricardo voltou para o sofá, porque ia começar o Falha Nossa, no Vídeo Show, e é sempre engraçado assistir celebridade fingindo que é gente de verdade.
No terceiro dia, ele já imaginava quem era. Interrompendo as vídeo cacetadas e o pudim de leite de caixinha, aquele toque irritante. Atendeu o telefone sem nem a cortesia do “alô”.
-Mano, me deixa em paz, pelo amor de...
-Ricardo?
-Ah. Oi mãe. Desculpa, pensei que era outra pessoa. Tudo bom?
-Tudo certo. Escuta, Cado, um moço ligou aqui hoje mais cedo, pedindo pra falar com você. Falou que era urgente, que ele era você no futu...
*click.
Filho da puta. Acabaram as vídeo cacetadas.
No quarto dia Ricardo resolveu conversar. Era isso ou tirar o telefone do gancho, e ele precisava do telefone pra pedir pizza.
-Alo.
-NÃO DESLIGA, NÃO DESLIGA.
-Não vou desligar.
-NÃO... Ah... Tá bom. Oi. Tudo bem?
-Fala cara.
-Eu sou você no futuro.
-Uhum.
-Escuta... Tenho que te falar um bagulho muito importante.
A voz do outro lado era séria, e realmente parecia a sua. Ricardo hesitou. Será? Será que podia mesmo...
-O que?
-É muito importante cara. Por favor, me escuta.
Será que, de alguma forma, o universo estava dando outra chance para ele? Uma chance de tirar sua vida daquela rotina? De, de repente, ligar para a Clara, tentar acertar as coisas, começar de novo? Conseguir o emprego de volta, parar de ir dormir às cinco da manhã todo dia?
Será que Ricardo tinha agora a oportunidade de ver seu futuro e fazer algo a respeito? Do outro lado daquela linha telefônica, poderia estar a resposta que tiraria sua vida daquele ciclo de tédio, cerveja quente e Cheetos? Uma luz, um guia, uma nova chance para começar, para ser de novo o Cado, aquele menino da faculdade com um sorriso bonito e bom de papo. Aquele menino, que agora não vai na reunião de dez anos de formado por vergonha da barriga e da vida.
-Tô escutando. Fala.
-Tem um carro cor de gelo parado aí na sua rua?
Ricardo afastou o telefone do ouvido e ficou olhando para o bocal. A voz do outro lado tentava conter o riso. Devagar, recolocou o aparelho no gancho, e pensou que era engraçado que as crianças de hoje em dia nem devem saber o que é “gancho” de telefone.
Pensou também que talvez fosse menos por causa da pizza e mais por causa da Clara que ele não tirava o telefone do gancho.

E voltou para o sofá, porque o Ratinho já estava abrindo o envelope de DNA e ele não queria perder.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Insetos

Pouca gente sabe, mas Deus não criou todos os animais. Ele fez os principais, leão, macaco, zebra, etc. As contas importantes. As menores ficaram pro estagiário. Foi assim que surgiram os insetos.
-Senhor, o relatório que o Senhor pediu aqui, da taturana.
-Ah, legal, Marcelo, eu já dou uma olhada aqui. Brigado, viu?
-Quié isso chefe. Vou fazer meu almoço agora, qualquer coisa to no celular viu?
-Ta bom, vai lá, eu... Ô Marcelo, volta aqui.
-Fala, Senhor.
-Que porra é essa, Marcelo?
-O que senhor?
-Que porra é essa que você fez?
-A taturana, senhor.
-Ta, eu sei, eu entendi. Mas você viu esse bicho?
Deus levanta a folha, inquisidor, como uma prova do crime, para Marcelo.
-Que que tem, senhor?
-Ela queima? É isso mesmo?
-Sim, senhor. Eu achei que como mecanismo de defesa....
-Você fez uma minhoca peluda que queima?
-Sim, senhor.
-Puta que o pariu, Marcelo... Deixa eu ver o que mais você tem, me trás os outros relatórios.
Marcelo, nervoso, tira da mochila um maço de papéis.
-Deixa eu ver isso aqui... Vespa...
-Ah, se você não gostou da taturana, eu acho que a...
-CARALHO MARCELO, QUE MERDA É ESSA?
-É a vespa, senhor. Eu baseei no design da abelha que o senhor fez, mas tent...
-ESSA PORRA NÃO É UMA ABELHA, MARCELO. ISSO AQUI NÃO É UMA ABELHA NEM FODENDO.
-Não, eu sei, senhor, eu...
-Pra começar a abelha é listradinha, bonitinha. E morre depois que pica. Essa merda não morre, confirma? Ela pica quantas vezes quiser?
-Sim, é verdade, senhor, mais...
-Você fez o equivalente artrópode de um esfaqueador em série, é isso?
Marcelo suspira, decepcionado. Deus passa os olhos pelos relatórios, exausto.
-Pelo menos a abelha faz mel, que que essa porra faz? Pelo amor de deus Marcelo... E isso aqui?
-Ah, esse aí eu não terminei ainda, senhor, tem que...
-Que que ela faz? É barata, o nome, é isso?
-É a barata, senhor. Ela não faz... Não faz muita coisa ainda, mas é só um protótipo.
-Como não faz muita coisa?
-Ah... Ela... Ela voa na cara das pessoas.
-Sei..
-E... É, é isso. Você vê assim, sabe, de canto, atrás da geladeira? Aí ela vêm e voa. Mas não pica nem nada, não tem veneno.
-Sei, só voa na cara das pessoas, mesmo.
-Só voa na cara das pessoas, isso.
-Caralho, Marcelo... Bom, deixa essa de canto aqui. Vamo vê aqui, e essa aranha?
-NÃO, NÃO, PERAI. Essa eu vou mudar ainda, não ta pronto.
Marcelo tenta tirar o papel das mãos de Deus, mas é tarde. Já de pé, com a mão espalmada cobrindo a boca, Deus começa a respirar rápido.
-Marcelo... Meu Deus, que merda é essa?
-Não é tão ruim quanto parece, eu ainda...
-OITO PATAS?
-Eu to pensando em colocar em outra categoria essa daí, porque já não é tanto inseto, ficou bem diferente do que eu pensava.
-OITO OLHOS, MARCELO?
-Talvez uma categoria própria, junto com o escorpião, não sei ainda...
-PORRA MARCELO, VOCÊ FEZ ARANHA QUE PULA?
-Ah, essa daí é só uma espécie. Eu achei que...
-TEM ARANHA QUE ANDA NA ÁGUA, MARCELO? ARANHA QUE ANDA NA ÁGUA, PORRA?
-Tem essa daí também, mas ela não tem venen...
-ARANHA JESUS, MARCELO? PUTA MERDA, MARCELO.
-Eu vou rever isso daí, não tá pronto ainda.
Deus joga  o corpo de volta na cadeira, exausto.
-Revê isso tudo, por favor Marcelo. Assim não tem condições.
-Pode deixar, Senhor, voltando do almoço eu passo a limpo isso aí, prometo.
-Tá, tá bom. Vai lá pro almoço. E Marcelo...
-Oi, chefe.
-Que que é esse escorpião que você falou aí?

-Ah... Deixa quieto. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Lembrar

E eu não aguento mais. Falar com você. Manter esse acordo cordial, essa troca de favores automatica. Eu não suporto os nossos beijos de despedida as oito da manhã, nem os de reencontro as seis da tarde. Eu não aguento o seu sorriso, e eu desprezo o seu abraço na cama.

Não é porque eu não te amo, é justamente o contrário. Eu não aceito que nossa vida virou essa paródia de sí mesma. Eu não suporto que seja tão fácil passar o dia longe de você, porque eu lembro de quando nem o nosso olhar se separava, quando doía, doía fisicamente, ficar longe de ti.

Teu sorriso sem sabor me incomoda porque espelha o teu riso do começo, o teu riso de alegria de verdade, aquele sorriso que você guardava só pra mim, não esse sorriso cansado de quem desistiu.

Cada beijo sem graça teu me machuca, porque me tráz de volta os nossos beijos de antes. Cada abraço leve teu me causa dor, porque me voltam ao coração todos aqueles abraços do começo, tão apertados que parecia que você e eu queriamos virar uma coisa só.

E viramos. Você e eu somos um, e agora você vem reclamar?Vem perguntar pra onde foi o meu amor? Porque teus gestos não me movem mais? Porque eu não te amo?
É claro que eu te amo. Eu não aguento a tua presença, eu não aguento falar com você, eu não aguento nem te ver, porque você é quem eu mais sinto falta. E, que droga, tudo o que você faz é me lembrar de você.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Vencedor



Aprendeu tudo o que precisava nos cursos de empreendedorismo, nas palestras sobre liderança e nas matérias da Exame.

Sua carreira não foi uma subida, foi uma escalada. Avançava de cargo da empresa como quem passa de fase no videogame. Em menos de dez anos, já era diretor executivo e tinha sala própria com vista para a Faria Lima.

A esposa jamais ganhou apelido. Aprendeu no workshop de interrelacionamentos pessoais que, para transparecer confiança e demonstrar afinidade, deve-se sempre usar o primeiro nome do interlocutor. Ela o chamava de "Amor", ele a chamava de Roberta.

Os filhos foram pra Disney, mas um de cada vez. Leu no Manual do Lider Nato, best-seller do mundo empresarial, que a recompensa individual é mais eficaz que a coletiva. Os filhos trocam fotos das viagens até hoje, discutindo em que brinquedo foram e qual gostaram mais, fantasiando como seria a viagem se todos tivessem ido juntos.

Estranharam ele no velório da Ofélia. O curso sobre Apresentação Pessoal e Engenharia Social ensinava a se apresentar sempre sorrindo, indiferente da situação. A Carminha, amiga da família e filha da Dona Ofélia, se ofendeu e levou pro pessoal o sorriso de orelha a orelha que ele ofereceu aos familiares na fila dos "meus pêsames".

Quando reencontrou um amigo de infância, na esquina do trabalho, recusou a oferta para um chopp no fim da tarde. Estabelecer a dominância na relação era importantíssimo, e ter a decisão do horário e local das reuniões era crucial. Marcou o chopp para o mês seguinte, num bar do outro lado da cidade, invertendo, assim, o paradigma da relação para o seu lado. O amigo não apareceu.

Mesmo assim, todo natal é recebido pela família como "o grande vencedor". "Esse venceu na vida". "Ta usando terno Armani, toma whisky importado todo fim de semana". "É um vencedor". Sorri, da oi para os tios, os cunhados e amigos da família, cumprimentando com a mão direita e cubrindo a mão do outro com a esquerda , sinal de afeto e superioridade moral, de acordo com a oficina de Interrelacionamentos de Sucesso que fez no Rio de Janeiro, custeado pela empresa.

Ele aceita os elogios, balança a cabeça, abre ainda mais o sorriso. Dos lados da boca, o lábio puxa, repuxa. Machuca, a mandibula começa a travar. O sorriso cada vez maior, agradecendo, contando, abraçando. É importante sorrir, sempre sorrir. Manter o contato visual conta muito, claro, e sempre oferecer a cadeira para o outro sentar. Sempre que for interrompido, é importante demorar de 3 a 5 segundos para tirar os olhos do que estiver fazendo, seja um livro, o computador, qualquer coisa. Mesmo que não se esteja tão ocupado. É de bom tom, estabelece a superioridade e tira o balanço do outro. Delegar tarefas, sempre com a expressão "vou precisar que você faça". Mais autoritária que a "você poderia fazer", mas menos agressiva que a "faça isso". Falar sempre um pouco mais alto que o outro, também conta. Mas sorrir. Acima de tudo, sorrir. Não se pode parar de sorrir. Nunca. Jamais. Se você quer vencer na vida, sorria.

Mesmo sozinho. Sorria antes de dormir. Sorria na privada. Treine o sorriso na frente do espelho. Sempre. Sempre. Sorria. Sorria. Sorria.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Resposta

Ah, meu querido, se a vida fosse assim tão fácil quanto era largar-me nos teus braços e esquecer de tudo que se passa pra fora da janela...

Me desculpe por pintar os teus cenários com minhas cores, que não duraram tanto quanto a eternidade que você tanto queria, mas eu preciso que você entenda, meu amor, meu grande amor, que minha briga nunca foi contigo.

Foi com essa vida intrometida, que se joga na minha frente e implora à ser vivida. Foi com esse universo mesquinho e egoista, que se abre em promessas até perder de vista.
Eu queria uma existência sem graça, sem nada no futuro e nada no passado, onde só existisse eu e você e mais ninguém, para sempre e um pouco além. Mas a vida se fez assim, cheia de promessas que me afastam de você.

Nunca duvide do meu amor, por favor. Nunca se pergunte em que olhar, em que sorriso, em que beijo terminou minha paixão. Não foi assim que aconteceu. Não foi culpa de ninguém. Não foi você, meu amor, e não fui eu. Foi tudo que fica além.

Você fez de mim a tua eternidade, e por isso, eu serei eternamente grata. Nosso tempo, nossa vida, nosso pedaço de existencia vai sempre existir. Não é passado, não é memória. É um pedaço de felicidade que flutua no universo, lacrado por uma porta cuja fechadura só nós dois temos a chave.

Não me esqueça. Quando minhas cores se apagarem dos teus cenários, guarde contigo um pedaço da tinta descascada. Não se esqueça nunca que, por onde quer que eu ande, eu jamais pintarei outros cenários com as mesmas cores com que pintei a nossa vida.

E guardou o porta-retratos de volta na gaveta

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Três Dias

Calhou que o universo me fez dia 28 de Dezembro de 1989, uma Quinta-Feira, e eu acho que isso me definiu. Calma, calma, não é papo de boteco, me escuta.

Eu nasci para ver os três últimos dias dos anos 80. Provavelmente assisti a queda do muro de Berlin na retrospectiva da Globo, e a música mais tocada nas rádios era uma do Phil Collins, Another Day in Paradise (existe alguma sutileza aqui em referência ao fato de que eu estava pedindo para não nascer, para não entrar nesse mundo triste e complicado, e ficar só mais um dia no paraíso, mas a preguiça é maior que a inspiração, então nem vou desenvolver). Três dias antes do recomeço. Guarda isso, a gente vai usar daqui a pouco.

E uma quinta-feira. Que, vai, não é um dia hediondo como o domingo (a existência do domingo foi, recentemente, classificada oficialmente pela ONU como um crime contra a humanidade) ou a segunda, nem tão bunda quanto a terça ou a quarta. Mas não é nenhuma sexta ou sábado. É um prelúdio, a quinta. Ela começa a deixar a semana pra trás, e já ta com um pé na sexta, na diversão, no fim de semana.

Me sobraram três dias daquela semana para viver também, lá em 89, quando o ano, a década e a semana acabaram no mesmo domingo.

Três dias de vida. É um suspiro, uma puxada de ar. Eu gosto disso. Apesar da inevitável fusão do presente de natal com o de aniversário, eu gosto. Eu mudo um pouquinho antes do resto das pessoas. Me preparo antes de todo mundo, sentindo um novo ano chegando, como quem experimenta a sopa direto da panela e da sua avaliação.

Meu aniversário é uma eterna quinta-feira. Uma “quase-novidade”, um prelúdio do que está por vir. Uma versão teste do próximo ano. Passa despercebido, entre o nascimento de Cristo e do Calendário Gregoriano. E assim, sem ninguém perceber, eu ganho esse bônus. Essas 72 horas de força a mais, de preparação para ficar mais velho. Parece meio triste, mas é verdade: antes de todas as pessoas, eu me preparo para colocar um ano a mais na minha história e um a menos no meu futuro.

Sem ninguém perceber, eu já passei de ano. Em segredo, envelheço um pouco antes do mundo. Para já ir acostumando.

Feliz Natal, Feliz Ano Novo, e, especialmente, Feliz Aniversário para todo mundo que comemora aniversário com a árvore de natal montada no canto da sala.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A Fonte



Andando sozinha e despreocupada, Sophia encontrou uma fonte. Dessa antigas, de pedra branca, que cospem a água do centro em todas as direções, formando um laguinho de águas turbulentas embaixo.


A fonte estava desligada, de forma que Sophia podia ver com clareza, através das folhas secas boiando e do musgo que se agarrava as laterais, um milhão de pequenas moedas douradas, roubando para si as luzes da noite e devolvendo-as em forma de pequenos pontos de luz incrustados no fundo de mármore.


Sorrindo, Sophia deixou a mão cair na água. Com leveza, balançou para lá e para cá, desenhando pequenos círculos concêntricos na superfície. Que estranho. Todas essas moedas, todos esses pedidos. Sophia sabia que as pessoas jogavam moedas na fonte, e, de pálpebras bem apertadas, sonhavam os sonhos que queriam realidade. Os únicos pedidos que eu fiz com moeda foram na padaria, de bala, doce ou chocolate. Todos se realizaram. Sophia permitiu-se um segundo sorriso e, afundando a mão na água, buscou uma moeda ao acaso.


Você foi um filho que nunca veio. Eles tentaram, tentaram e tentaram. Tudo o que queriam era você para ocupar o quarto vazio, que, com o tempo, foi virando depósito, envelopado por um papel de parede de unicórnios descascado e velho.


Sophia jogou a moeda de volta e pescou mais uma.


Você foi uma promoção. Finalmente o reconhecimento, depois de tantos anos de luta. Merecido, merecido. Agora pode comprar seu carro novo, e, quem sabe, planejar aquela viagem para Ushuaia.


Você foi o pedido de reconciliação. Depois daquela briga boba, que de tão boba e sem importância, acabou fazendo bobo e desimportante o casamento inteiro. Que coisa.


Você foi a recuperação milagrosa da vovó.


Você foi uma viagem para Disney, você foi um videogame novo e você foi o pedido para que o papai voltasse para a casa e a mamãe parasse de chorar.


Sophia mergulhou a mão mais uma vez e escolheu outra moeda.


E você... Você eu vou usar. Acho que o universo não vai ligar se eu reciclar um pedido.


Sophia fechou bem os olhos e apertou a moeda molhada entre as mãos. Eu queria encontrar um motivo para todas as coisas. Eu queria saber por que o universo se da ao trabalho de existir, e eu queria saber de onde a gente veio e pra onde a gente vai.


Eu queria saber.


Sophia largou a moeda descuidadamente na água, e suspirou assistindo o pedacinho de metal dançando, devagar, em direção ao fundo da fonte.


Já ia levantar para ir embora quando, sem pensar duas vezes, enfiou a mão na água e resgatou a moeda antes que batesse no fundo.


E um iPhone.





Jogou a moeda de volta e deu meia volta, deixando para trás o laguinho habitado pelos desejos daqueles que desejam.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Porta-Retrato



Eu não guardo rancor, nem raiva, ele disse, olhando bem no fundo dos seus olhos. Você nunca me deu o teu ódio, de forma que eu nem saberia onde guardar. 

Não. Eu guardo só o que você me deu. As minhas memórias sem graça, que você, sem pedir licença, invadiu e melhorou. Os retratos mentais de momentos mundanos, paisagens sem cor e vazias, que, sem nem pedir por favor, você pintou por cima, com as cores vivas com que pintava tudo.
Não pense que eu estou triste, que você me machucou. Não é você que está no poder. Não cabe a ti te tirar de mim. Saia pela porta quantas vezes quiser, o barulho já não me incomoda mais. De dentro de mim, você só sai quando eu quiser. Se eu quiser.

Você não está no poder. Vai, viaja o mundo, vai embora, esquece de mim, te perde em outros abraços, ele dizia. Mas você vai continuar pra sempre aqui, até quando eu não precisar mais de ti. E isso só cabe a mim dizer.

Você me ofereceu a sua vida, e por isso, eu sou eternamente grato. Obrigado por pintar a minha vida com as tuas cores. Aqui elas ficarão, até o tempo desgastar a tinta e uma nova cor aparecer. Obrigado. 

E guardou o porta-retratos de volta na gaveta.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Bem Casado

A felicidade, diferente de Luis XIV, não é um estado. É uma condição.
Desconfie de quem fala que é feliz. Ninguém é feliz. As pessoas são bem humoradas, contentes, aventureiras, otimistas, satisfeitas, mas não são felizes. Estão felizes, nesse ou naquele momento. É o máximo que se pode dizer sobre a felicidade (além do fato de ela ser como a pluma, que o vento vai levando pelo ar. Voa tão leve mas tem a vida breve, blá, blá, blá, etc e tal).
A felicidade é expectativa e conquista. Não muito diferente do bem casado de festa de formatura. Você já reparou no bem casado de festa de formatura? Repare, é um estudo existencialista fenomenal.
Sempre que uma festa de formatura oferece bem casado, os convidados se transformam. O bem casado, como a guerra e a tequila, transforma as pessoas. Ninguém mais está ali para celebrar os filhos, os namorados ou os professores. Todos tem uma missão em comum: conseguir bem casados.
As pessoas vão atrás do garçom. “Opa, da licença, tudo bom? Hehe. Deixa eu pegar um aqui pra minha esposa também, ela adora.” A esposa do sujeito morreu faz doze anos. Mas não importa. Vale tudo na hora do bem casado.
Então, recapitulando: felicidade é expectativa e conquista. Você quer um bem casado. Você vai atrás do garçom, pega um bem casado.BAM. Felicidade.
A questão é: o bem casado acaba. E você tem que ir atrás de outro. E outro. E outro. E o tempo entre o fim de um bem casado e o começo de outro é a expectativa, o trabalho. Até tem felicidade aí no meio, na perspectiva do próximo bem casado, mas, no geral, esse período entre bem casados é tempo morto..
E aí você pergunta: e se eu parar de gostar de bem casado? Bom, aí entram duas coisas: primeiro que não gostar de bem casado é coisa de gente mau caráter. Segundo que é difícil. É difícil porque bem casado é uma delícia.
Mas e aí, vamos supor que você consiga. Pronto. Você não gosta mais de bem casado. O que você faz agora na formatura?
Nada. Você não faz nada. Você alcançou algo muito mais importante que a felicidade. A plenitude. A plenitude, diferente da felicidade, não é estado. É condição. Você pode ser pleno para o resto da vida. É só parar de comer bem casado.
No fundo a vida é isso: uma eterna escolha entre a plenitude e a felicidade. E, a partir do momento em que você percebe que ela (a vida) é transitória, não faz sentido se apegar. Não faz sentido se apaixonar pelo que é finito.
É por isso que a vida em busca da felicidade é sofrimento. Porque nenhuma felicidade é felicidade mesmo quando vive sob a sombra do fim. Nenhum bem casado é tão doce quando você sabe que ele vai apagar. Você se apega, se apaixona, se lambuza no bem casado, mas aí vem a crise existencial: meu deus, já são quase duas horas. Os garçons já pararam de passar. Os bens casados estão acabando! E agora?
BAM. Tristeza. Sofrimento. O bem casado só é bom porque é ruim, e só é ruim porque é bom. Se fosse sempre bom, seria plenitude. Se fosse sempre ruim, não apaixonaria, e, portanto, não traria sofrimento.
No fim das contas você não precisa parar de gostar de bem casado. O que você precisa é entender os prós e contras de se viver uma vida a procura deles ou não. Aí você pode fazer uma escolha sensata, em vez de sair por aí comendo tudo o que você vê sem parar pra pensar nas consequências.
Ou isso ou você procura a receita de um bem casado infinito. Se você encontrar, me liga. Pfvr.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Menina

Pra onde é que eu posso ir
Se nos bares da esquina
Onde a gente bebia e chorava de rir
Eu só lembro de ti, menina

O que tem pra fazer?
Se todos os filmes que eu queria ver
Eu prometi assistir com você
O que tem pra fazer sem você, menina?

Se já procurei todo restaurante, toda festa
Todo boteco, teatro e cantina
Um espaço que não seja teu, pra chamar de meu
Um lugar sem você, menina

Se no meu quarto vejo teu corpo na cama
Teu rosto no porta retrato, teu cheiro no cobertor,
No vapor do espelho tuas juras de amor

Se na minha agenda teu nome ainda é o primeiro
Tuas ultimas palavras ainda tenho guardadas
No bilhete que achei esquecido em cima do travesseiro

Que música ainda tenho pra ouvir?
Se já procurei no meu repertório inteiro
Uma valsa que eu não tenha valsado contigo primeiro

E que mulher eu vou achar agora
Entre uma e outra esquina
Se me engasga a palavra na garganta, e sempre me espanta
Que é só tu que consigo chamar de menina

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Indiferença



Ele olhava para o céu, e o céu olhava de volta.
Ele aprendeu a dar nome às estrelas, mas isso foi há muito tempo. Primeiro as que estavam mais perto, com nomes dos deuses dos antigos. Júpiter, Vênus e Mercúrio. Depois as que estavam mais longe, mas que, por algum motivo que ele não entendia quando era novo, brilhavam mais: Alderaban e Antares e Proxima Centauri.
Ele olhava para o céu, e o céu olhava de volta. Por tanto tempo dividiram juntos esse espaço de existência, ele e Júpiter e Vênus e Antares e todas as outras coisas que brilhavam. “Todo esse tempo juntos e eu ainda não te conheço”, pensou ele, triste. Havia enfrentado tanta coisa, tanto tempo, tanto, tanto tempo sozinho naquele lugar, sem ninguém nem nada para fazer, senão contar, contar, contar. Contar todas as coisas que brilham no céu.
O montinho de terra em que se equilibrava andava, girava, passeava solto. Ou pelo menos era isso que ele achava. Foi triste descobrir que só estava dando voltas no mesmo lugar. Para sempre, para sempre girando no mesmo eixo, vendo o mesmo cenário se repetindo, até o fim.
Inventou um monte de nomes. Gravidade, Eletromagnetismo, Força Fraca, Força Forte, Átomo, Buraco Negro, Neutrinos. Tentando se aproximar, tentando entender. Mas era como dar apelidos para um amante platônico. Era como tentar imaginar como pensava, agia e falava uma paixão colegial que nunca lhe deu bola.
Era estranho. Tudo o que queria era um pouco de afeto, um pouco de compreensão. Reconhecimento. “Ei! Eu estou aqui, nessa bola azul! Me perceba! Me perceba! Eu percebo você!”. Estranho que um lugar tão cheio de sistemas binários e anãs brancas e supernovas possa ser tão frio.
“E você vai continuar aqui”, pensava ele enquanto olhava para o céu, e o céu olhava de volta. “Eu cheguei, me apresentei, perguntei seu nome, te olhei de perto, me aproximei, me apaixonei, e daqui a pouco já vou embora. E você vai continuar aqui, e nem ficou sabendo de mim. Não se deu ao trabalho de ao menos me mandar calar a boca”.
Ele voltou o rosto para baixo, pronto para deixar o céu em paz. Sozinho, sempre sozinho naquele vazio. Não adiantava chutar, gritar, espernear. Mas ele queria ser reconhecido, só isso. Queria ser notado, queria provar, nem que fosse só para ele mesmo, que existia.
Soltou o graveto e caminhou para longe, deixando para trás as palavras gravadas na terra: “O ser humano esteve aqui. Aqui ele nasceu, cresceu, se alimentou, riu e chorou. Sem que ninguém percebesse ele viveu, observou, se encantou, fez perguntas e morreu. Mas ele esteve aqui”.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Facebook




Ae ganhei uma garrafaa de tequila! #obrigadoamor #euteamo #4ever
Curtir Comentar Compartilhar – há 4 horas próximo a São Paulo


Já passou das 22 pode beber né? Rsrs #alcoolismo
Curtir Comentar Compartilhar – há 4 horas próximo a São Paulo


Tem muita gente legal no meu face, e muita gente que eu não gosto também. #verdade
Curtir Comentar Compartilhar – há 4 horas próximo a São Paulo


@amor, adorei a tequila, é uma delícia!
Curtir Comentar Compartilhar – há 4 horas próximo a São Paulo


HAHAHA EU TENTEI TE MARCAR COMO @AMOR, AMOR! #burro
Curtir Comentar Compartilhar – há 3 horas próximo a São Paulo


Nossa, vocês já pararam pra ouvir o hino brasileiro? Tipo, ouvir meeeesmo? É lindo. #patriota
Curtir Comentar Compartilhar – há 3 horas próximo a São Paulo


Só tem filho da puta nesse face.
Curtir Comentar Compartilhar – há 2 horas próximo a São Paulo


É, na hora que a massa esquenta todo mundo quer panqueca, né? #safados #foraDilma
Curtir Comentar Compartilhar – há 1 hora próximo a São Paulo


@marcelo_doido NÃO DESLIGA NA MINHA CARA, FILHO DASD PUTA!! TU NÃO É BRODER! #nãoébroder
Curtir Comentar Compartilhar – há 1 hora próximo a São Paulo


As vezes eu penso em todis trumpfl palks bufalos. #conspiração #olhodepeixe
Curtir Comentar Compartilhar – há 52 minutos próximo a São Paulo


Desculpa, @marcelo_doido, eu exagerei. #cuzão #patriota
Curtir Comentar Compartilhar – há 50 minutos próximo a São Paulo


@ONU E se a gente colocasse os desempregados pra trabalhar plantando comida pra dar pros que passam fome? #solução #mundomelhor #bonovox
Curtir Comentar Compartilhar – há 47 minutos próximo a São Paulo


@amor VOCÊ ESQUECEU DO MEU ANIVERSÁRIO! CADE MEU PRESENTE, CACHORRA? #vagaba #saidaminhavida #bochechasemclaudinho
Curtir Comentar Compartilhar – há 43 minutos próximo a São Paulo


Vixe. #avião
Curtir Comentar Compartilhar – há 8 minutos próximo a Aeroporto de Guarulhos


ONDE EU TO PORRA? #medo #freeshop #nessabumbaeunaoandomais
Curtir Comentar Compartilhar – há 2 minutos próximo a Aeroporto de Guarulhos


SÉRIO ALGUÉM ME AJUDA! #aterrorizado #janelinha
Curtir Comentar Compartilhar – há 1 minutos próximo a Aeroporto de Guarulhos


@marcelo_doido sério memo cara, me perdoa. to mto arrependido. vou te ligar. #frodoesam
Curtir Comentar Compartilhar – há 32 segundos próximo a Aeroporto de Guarulhos
Para esse dia das bruxas, a bailarina resolveu se vestir de dona de casa.

Todo mundo saiu assustado quando viu a menina de cabelo enrolado, um olhar meio cansado, guardando o esfregão, esperando o marido chegar do bar, o telefone na orelha em uma mão, na outra uns calos e um esfregão.  

super-herói foi pro baile de executivo ressentido. Queria ter sido escultor, a faculdade levou pra outro caminho, hoje em dia é gerente que quer ser diretor, gosta muito de queijo e de vinho, dorme em lençol de linho e não chama mais a esposa de amor. 

O jogador de futebol se vestiu de menino de rua. Fingiu que não tinha gingado na perna, nem uma casa moderna e nem um bairro nobre pra ver da janela. Fingiu que a sorte nunca o tirou da favela.  

E a atriz de novela? Foi de gordinha sem amigos. Se vestiu de uma pessoa legal, sem nada de muito especial. Por dentro é um amor, mas a fantasia espanta só da aparência que tem no exterior. Fingiu que não era bonita, não tinha jeito, não falava direito. Grudou na fantasia um monte de defeito. Fingiu que não tinha o corpo perfeito. 

O namorado foi de coração colado. Ninguém sabia do término e que ela já estava com outro, um amigo da escola. Juntou durexsuper bonder e cola. Grudou o coração. Já tem uma lista de mulheres pra tentar outra paixão. Apareceu no baile vestido de superação. 

E a bruxa, o vampiro e o esqueleto estavam todos de preto. Sombrinha, terno, óculos e roupa de inverno. Um olhar sério e um andar lento, um jeito de quem já não tem tempo. De que a vida passou e sobrou o escritório e o vale-alimentação. Foram vestidos do fim das fantasias e das brincadeiras e de começo da vida adulta. Foram vestidos para folhear catálogos de decoração, não gostar de multidão e reclamar da inflação. Foram de velório da imaginação. 
Para esse dia das bruxas, a bailarina resolveu se vestir de dona de casa. Todo mundo saiu assustado quando viu a menina de cabelo enrolado, um olhar meio cansado, guardando o esfregão, esperando o marido chegar do bar, o telefone na orelha em uma mão, na outra uns calos e um esfregão.
O super-herói foi pro baile de executivo ressentido. Queria ter sido escultor, a faculdade levou pra outro caminho, hoje em dia é gerente que quer ser diretor, gosta muito de queijo e de vinho, dorme em lençol de linho e não chama mais a esposa de amor. O jogador de futebol se vestiu de menino de rua. Fingiu que não tinha gingado na perna, nem uma casa moderna e nem um bairro nobre pra ver da janela. Fingiu que a sorte nunca o tirou da favela.
E a atriz de novela? Foi de gordinha sem amigos. Se vestiu de uma pessoa legal, sem nada de muito especial. Por dentro é um amor, mas a fantasia espanta só da aparência que tem no exterior. Fingiu que não era bonita, não tinha jeito, não falava direito. Grudou na fantasia um monte de defeito. Fingiu que não tinha o corpo perfeito.
O namorado foi de coração colado. Ninguém sabia do término e que ela já estava com outro, um amigo da escola. Juntou durex, super bonder e cola. Grudou o coração. Já tem uma lista de mulheres pra tentar outra paixão. Apareceu no baile vestido de superação.
E a bruxa, o vampiro e o esqueleto estavam todos de preto. Sombrinha, terno, óculos e roupa de inverno. Um olhar sério e um andar lento, um jeito de quem já não tem tempo. De que a vida passou e sobrou o escritório e o vale-alimentação. Foram vestidos do fim das fantasias e das brincadeiras e de começo da vida adulta. Foram vestidos para folhear catálogos de decoração, não gostar de multidão e reclamar da inflação. Foram de velório da imaginação.