quarta-feira, 24 de julho de 2013
Casas
Ninguém mora na casa do vizinho. A definição de vizinho, por si só, já exclui essa possibilidade. Pra ser vizinho tem que morar perto, mas não junto.
E é isso, as vezes eu penso numa grande vizinhança. Um bairro imenso, cheio de casas. Algumas grandes, algumas pequenas, algumas decrepitas, palácios, studios e lofts.
E, claro, todo mundo visita um vizinho, de vez em quando. Um churrasco na casa de um, um jogo de futebol na casa do outro. Uma noitada de cerveja e jogos de tabuleiro. Um queijos-e-vinhos.
Mas chega a hora de ir pra casa, sempre, sempre. E o vizinho não vai junto, porque ele tem a casa dele, senão não era vizinho.
E você fecha a porta, acende a luz, tira os sapatos e as meias e senta no sofá. E aí é só você.
Eu acho que a gente sente muita falta de companhia, de contato, de mais alguém na nossa casa. E ninguém mais tem a chave. Ninguém mais conhece os corredores labirinticos, os quartos e os porões e os comodos e os móveis, ninguém mais anda por ali, só você.
A gente guarda memórias na casa, é verdade. Grandes rolos de filme de namoradas, amigos, momentos. Fotos. Porta-Retratos. Vidas inteiras jogadas dentro de uma caixa em algum quarto, pra gente se consolar.
Mas passa. Sempre passa e não tem ninguém em casa. Não da pra ter ninguém em casa, não cabe. Você pode sair o máximo possível, pode passar o dia na casa dos vizinhos, no parque, na rua, mas uma hora você tem que dormir. Uma hora, cedo ou tarde, você encara o batente da sua porta, e aí, aí é só você.
Eu acho que a gente sente falta do toque. É ísso, tocar na pessoa, ser tocado. De verdade, na essência. Porque, na verdade, na grande verdade, é isso que não da pra alcançar. Você pode ser a pessoa mais livre do mundo, mas vai sempre estar presa dentro de você. Só você. Da pra falar pela janela, da pra usar o telefone, as vezes até internet tem. Mas lá dentro, vivendo bem lá dentro dessa casa, só cabe você e mais ninguém.
Ou isso ou o frio me deprimiu.
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Primeira Vez
Sabe a primeira vez que você usa uma escova de dentes nova, aquela sensação estranha de que você está escovando os dentes errado, ou de que a escova não encaixa direito entre os seus dentes?
Lembra da primeira vez que você saiu sozinho com alguém que hoje você conhece bem? Aqueles silêncios que incomodam, aqueles dez goles por segundo que você toma da sua bebida só pra fazer alguma coisa, enquanto procura na cabeça alguma coisa pra falar (ela gosta de futebol? que faculdade que ele faz mesmo? o que foi que a gente conversou aquele dia com o pessoal, que todo mundo riu?)
Lembra da primeira vez que você experimentou uma comida que parecia horrível, mas que te falaram que era uma delícia (só um pedaço, para de ser fresco...)? Lembra como você experimentou, continuou achando uma bosta e nunca mais comeu de novo?
Sabe? Aquela sensação de começar a ler um livro ou assistir um seriado e achar ele espetacular, e recomendar para todos os amigos e não conseguir falar de outra coisa... E depois de um tempo perceber que nem era tão bom assim, e graças a Deus que nenhum dos seus amigos foi atrás.
Lembra da primeira vez que você viu o mar? É, eu também não, eu sou de Santos, eu nasci vendo o mar... Mas tem muita gente que só foi ver mais velha, e eles devem lembrar, e deve ter sido marcante pra caramba (Poxa, mãe, é maior que a piscina do Tio Éder).
Sabe a primeira vez que você tirou dez em uma prova? Lembra daquela sensação?
Lembra do seu primeiro celular? Ele tinha Snake também? Lembra quando tinha jogo, câmera e agenda (e só), as pessoas comentavam: "nossa, celular hoje em dia faz tanta coisa, que ligar é o de menos".
O primeiro filme que você viu no cinema? Seu primeiro beijo? Seu primeiro beijo no cinema? O primeiro filme que você viu em VHS? E depois em DVD? Depois em Blu-Ray? Depois mandou tudo a merda e falou "foda-se, vou esperar eles decidirem um e aí eu recompro minha coleção inteira."
Lembra da primeira vez que você deu a resposta perfeita para um insulto? Daquelas que são seguidas ou por um silêncio vitorioso ou por um sussuro coletivo de "ooooooh" (ou, na variante mais agressiva: "ai caraaaaaaalho"). E a vez que você pensou no insulto perfeito dez minutos depois da discussão? E repassou ela na cabeça cinco mil vezes, ganhando no imaginário a discussão que aconteceu na vida real.
A primeira vez que você ganhou roupa de natal. Que bosta. E brinquedo sem pilha? "Parabéns, nesse Natal você ganhou a perspectiva de brincar com o presente que você esperou o ano inteiro amanhã. Por hoje, assista o especial da Globo com a gente enquanto as outras crianças se divertem".
A primeira vez que você percebeu que Jesus não era brasileiro, e que Belém do Pará é outra Belém, e a professora do colégio católico ficou meio brava.
A primeira vez que você chorou, sorriu, beijou, amou, odiou, esperou, espirrou, dirigiu um carro, descobriu uma mentira, contou uma mentira, tomou chuva por vontade própria, ficou bêbado, engessou a perna, viajou, andou de avião, chorou de rir, riu no meio do choro (e ficou puto da vida porque rir no meio do choro é uma sensação escrota), andou de trem, saiu de casa sem os pais, jogou futebol na rua, viu seu time ser campeão...
Se existe uma instituição que regula a entrada das nossas experiências de vida na nossa memória, pode ter certeza que as nossas primeiras vezes tem atendimento preferencial (alias, lembra da primeira vez que você pegou fila de banco?)
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Tabuleiro
Três,
dois, um, rola o dado, vai começar.
Escolhe
um pino e um time, escolhe um lado. E começa a jogar.
E você anda
quatro casas e para no quadrado. “Meu primeiro amor”. Gira a roleta. Fique uma
rodada sem jogar, você está de coração partido, seu amor não foi retribuido.
Passou,
joga de novo. Passou a rodada, mas você não. Andou um quadrado, caiu no
“Repetiu de Ano”. Volte um quadrado, estude mais. Seus amigos continuaram, os
pinos indo pra frente, você ficou pra trás.
Calma, tem
mais jogo, continua. Cada passo é um passo. Tem tempo. Puxa uma carta do maço.
“Adolescencia”. Ande quatro casas, volte três, fique em dúvidas, grite pros
seus pais “a vida é minha”. Fique com o rosto cheio de espinha. Ande mais vinte
casas. Volte quarenta. Seus amigos já deram beijo na boca, você nem tenta. Na
festa todo mundo dança, você senta.
Rola o
dado, anda, parou em outra casa? “Vestibular”. Fique três rodadas sem jogar.
Alias, levanta da mesa, joga o tabuleiro longe e vai estudar.
Passou!
Ande dez casas e vá para a Faculdade. Role o dado dez vezes: Uma pelas
namoradas, uma pelas provas, duas pelas festas e as baladas, três pelos amigos,
mais uma por alguns corações partidos, uma para o fim de toda essa loucura, a
última pela formatura.
Parabéns!
Você caiu no “primeiro emprego”! Na segunda-feira vê se chega no horário. Role
o dado, se der quatro e meio você vai receber um bom salário.
Anda de
novo, dessa vez de carro! É um ponto zero e não engata direito a ré, mas é
melhor que andar a pé.
Jackpot!
“Casamento”. Parabéns! Junte os dois pinos na mesma casa (alugada), volte
trinta para pagar a festa e na Lua de Mel você gasta o que resta.
Puxa outra
carta do baralho, com cuidado. Você fez quarenta anos! Ganhou dois filhos e um
emprego mais bem remunerado.
Jogada
bonus! Você ainda não ficou careca, as calças largas precisam de um cinto e seu
cabelo branco te deu um ar distinto.
Rola o
dado, mais um pouco. Mais idade, aposentadoria. Seu casamento ainda é feliz,
quem diria! Você encontra os pinos divorciados para uns petiscos e bebida, e
descobre que até que não ta ruim a sua vida.
Joga mais
um pouco, devagar, que a mão ta fraca, se forçar muito ela empaca, e aí...
E aí quer
saber? E aí você descobre que era só um jogo o tempo inteiro. Só uns pinos em
cima de um tabuleiro. E pro diabo com as regras, ande pra trás, pra frente,
jogue o tabuleiro pro alto, seja incauto. Quebre a ampulheta, pise em cima da
roleta, faz da vida o que quiser, desde que inclua diversão. Esse jogo ta no
armário faz um tempão, e ninguém ainda aprendeu a jogar direito, da sempre confusão.
E quer saber? Desconfio que nem vem com manual de instrução.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Pancop Episode I - The Phantom Menace
Eu
levantei a fita amarela e preta que isolava a área e passei por baixo.
Vislumbrei mais uma vez a cena. Não era bonito.
A mulher
parecia na faixa dos dezoito anos. Dezenove, de acordo com a identificação que
encontramos na bolsa. Seu rosto era lindo: olhos azuis que fariam o mais durão
dos guerreiros espartanos fraquejar e segurar uma lágrima, lábios vermelhos e
preenchidos, porém não exagerados. Se insinuando, era isso. Labios que se
insinuavam. Deixavam promessas no ar, mas não se comprometiam a nada. Um pele
lisa e branca, e cabelos loiros escorridos.
O resto
do corpo estava do outro lado da calçada.
-Tenente,
eu já passei as informações para a perícia, eles devem...
-Não. –
Fui interrompido pela voz grave do Tenente Willians. – A pericia não vai dar
conta disso. Ninguém do batalhão vai.
Eu sabia
onde ele ia chegar. Não havia escolha. Eu odiava aquele cara, todos no batalhão
odiavam. Mas haviam algumas situações...Algumas situações que só ele sabia
resolver.
Dezenove
anos. Novinha. Era a especialidade dele.
-Oficial
Vitale. – Disse Willians, uma careta entortando seu rosto – Entre em contato
com Pancop imediatamente.
Uma ligação
e quarenta e cinco minutos depois, despontava do fim da rua a silhueta de um
homem em uma bicicleta. O barulho dos sininhos era inconfundível. Pancop havia
chegado.
-O que
temos aqui? – Perguntou Pancop, puxando o apoio da bicicleta com a perna direita
enquanto removia um palito mordido da boca.
-Ahn,
parece um...
-EU NÃO
LEMBRO DE TER PERGUNTADO MERDA NENHUMA PRA NINGUÉM. – Gritou Pancop, chutando a
própria bicicleta no chão.
-Ahn...
Na verdade, senhor Pancop – Começou um oficial que até então se mantinha em
silêncio – Você acabou de perguntar o que temos aqui...
-Ah... –
Disse Pancop, olhando em volta. – É, sim, é verdade. Muito esperto você,
oficial... – Disse, esperando a resposta
-Oficial
Teddy, senhor Pancop.
-Muito
esperto oficial Teddy. Agora levante a minha bicicleta e saia do caminho. –
Pancop passou por baixo da faixa de isolamento. – O que temos aqui, Vitale?
De todas
as pessoas da policia, a única por quem Pancop nutria respeito e tratava com
consideração era eu. Talvez fosse porque sempre tenha respeitado meu trabalho
como policial. Talvez simplesmente tenha ido com a minha cara. Talvez tenha
sido porque, na única vez em que levantou a voz pra mim, eu arranquei seu olho
esquerdo com um copo de requeijão quebrado.
-Parece
que ela foi encontrada hoje de manhã, já nesse estado. – Comecei – Não temos
muita informação ainda, mas a pericia deve terminar o trabalho até o fim da
tarde.
-A
perícia... – Disse Pancop, com desprezo – Quem precisa da perícia?
Pancop
se abaixou e pegou a cabeça da garota nas mãos. Levantou-se e ficou
encarando-a, face a face, segurando-a pelas duas bochechas, como se fosse
beija-la.
-Olhos
bonitos. Pele lisinha, sem cravos. Eu diria... Dezenove anos?
Houve um
murmúrio de espanto entre os policiais. Quando se tratava de novinhas, Pancop
era, de fato, genial.
-Correto,
Pancop. Dezenove anos, de acordo com o RG. – Respondi.
-Do
jeito que eu gosto. – Disse Pancop, fechando os olhos e abaixando a cabeça da
garota em direção a suas partes intimas.
-Ahn,
Pancop... – Cutuquei seu ombro, e ele pareceu voltar a realidade.
-Oi?
Eu... Certo, certo. Temos que esperar o resultado da perícia. – Pancop olhou em
volta, colocou a cabeça decepada embaixo do braço esquerdo e disparou – Eu vou
levar isso aqui comigo... Para análise.
Montou em
sua bicicleta e disparou, o barulho dos sininhos se distanciando enquanto ele
pedalava rumo ao labirinto sujo e caótico que era o centro de Santos.
Naquela
noite, enquanto eu terminava minha xícara de chá e me preparava para dormir, o
telefone tocou.
-Alo? –
Atendi, com a voz cansada.
-É
Pancop. – Soou a voz arrastada do outro lado da linha – Me encontre no Jutas em
dez minutos.
-Eu...
Pancop, são duas horas da manhã!
-Não me
importa. Pare de ser menininha. Levante da cama e me encontre lá em dez minutos.
-Não, o
problema não é esse. É que o Jutas já ta fechado.
-Ah. – A
voz hesitou. – Ok, Karaoke então.
Relutante,
coloquei uma calça e uma camisa velha e abri a porta de casa. A noite ia ser
longa.
I don’t care who
you are
Where you are from
Don’t care what you
did
As long as you love
me
O
Karaoke era um bar amplo com iluminação indireta. Longas mesas de mármore se
espalhavam pelo ambiente, rodeadas de cadeiras estofadas em veludo e penas de
ganso. No canto, uma velha senhora cantava uma melodia no palco.
Encontrei
Pancop na sua mesa habitual, tomando seu drink de sempre: Cachaça com cerveja
conhaque vodka absinto whisky tequila e toddynho light de morango.
-Está
diminuindo na bebida? - Perguntei, notando que ele havia pedido uma dose
simples, não dupla.
-A noite
é uma criança. – Respondeu Pancop, virando o copo.
-Na
verdade não. Hoje é quinta, o Karaoke fecha daqui a uma hora.
-É
verdade. – Pancop levantou o copo vazio – Garçom, mais quatorze doses.
-Eu vou
tomar a mesma coisa – Falei, virando para o garçom.
-Então...
Faz tempo, desde a última vez que estivemos aqui. Você lembra? – Perguntei,
olhando de canto de olho para Pancop, esperando uma reação.
-Eu não
gosto de falar sobre isso. – Respondeu Pancop, acendendo um cigarro.
-Claro,
claro... É só que... A música que está tocando... – Desconversei.
Na
verdade, Pancop estava afastado da polícia há oito meses. Seu último caso havia
sido exatamente no Karaoke. Foi no Karaoke que tudo deu errado. E a música, a
música que a mulher estava cantando... Era a mesma daquela noite. Da noite em
que tudo deu errado.
-Sabe,
seria bom você falar sobre isso, Pan...
-EU JÁ
FALEI QUE NÃO! - Disse Pancop, batendo
na mesa, ao mesmo tempo que o garçom servia as 28 doses, o que foi infeliz.
-Eu
trago um pano. – Disse o garçom, virando nos calcanhares para sair.
-Não
precisa – Respondeu Pancop, lambendo a mesa. – Nos deixe em paz por um minuto,
por favor.
O garçom
nos deixou sozinhos. Pancop levantou o rosto da mesa e limpou a boca com a
parte de trás da mão. – Eu descobri algumas coisas. Sobre a novinha.
-O que?
– Perguntei, interessado.
-Veja. –
Pancop puxou uma mala para cima da mesa e abriu o zipper. Dentro, estava a
cabeça que eu havia visto mais cedo, na cena do crime.
-Você
está louco? Esconda isso!
-Pelo
amor de Deus, Vitale, é o Karaoke aqui. – Disse Pancop, desmerecendo minhas
preocupações – Só psicopatas e pervertidos frequentam esse lugar.
-Ok, ok.
– Respondi, me dando por vencido. - O
que você queria me mostrar?
-Está
vendo aqui, na boca dela? – Disse Pancop, apontando.
-Sim,
sim, eu... Você passou batom nos labios dela, Pancop?
-Eu...
Claro que... – Pancop pareceu sem graça, mas se recuperou logo – Passei. Mas
isso não vem ao caso. Olhe os dentes.
-Sei, o
que tem os dentes? – Perguntei, me inclinando para enxergar melhor.
-Percebe
que eles estão de outra cor?
-Estão
vermelhos, Pancop. Mas isso era de se esperar – Eu disse, indignado com a inocência
do meu amigo – Ela deve ter engasgado no próprio sangue quando estava sendo
decepada.
-Você me
desaponta, Vitale. – Disse Pancop, apagando seu cigarro na mesa. – Olhe de
perto, seus dentes são estão vermelhos. Estão rosa.
Olhei de
perto. Era verdade, os dentes estavam rosa. O que significava aquilo?
-O
que... Mas porque rosa?
-Exatamente.
– Respondeu Pancop, pensativo – Porque rosa. Foi exatamente essa a pergunta que
eu me fiz depois, tomando banho.
-Depois
do que?
-De...
Jogar Fifa. – Pancop levantou-se. – Mas eu acho que eu tenho a resposta. Venha
comigo
Andamos
até o lado de fora do bar e Pancop acendeu outro cigarro. – Vamos fazer uma
pequena viagem.
-Para
onde? – Perguntei.
-Não é
longe. – Respondeu Pancop, colocando o capacete e sentando na bicicleta – Me
siga.
Acompanhei
Pancop até uma clinica de dentistas, do lado de onde havia acontecido o crime.
Ele desmontou da bicicleta e tocou a campainha.
-Pancop,
são 3 horas da manhã, ninguém vai... – Comecei, mas fui surpreendido por um
barulho de tranca se abrindo e um vulto aparecendo do outro lado da porta.
-O que
vocês querem? – Perguntou a mulher do outro lado.
-Fazer
algumas perguntas, Mary, se não tiver problemas.
-Pancop,
você de novo... – Disse a mulher, cansada. – Pois bem, subam.
O
consultório estava vazio. Um cobertor e um travesseiro em cima de um dos sofás
da recepção fazia as vezes de cama adaptada.
Me
lembrei que Pancop tinha contatos e especialistas para consultar na cidade
inteira, quando estava na ativa. Mary devia ser uma informante-dentista.
-Mary,
você recebeu meu e-mail? – Perguntou Pancop.
-Com as
fotos horríveis daquela cabeça? Sim, recebi.
-E os
dentes rosa? O que você acha da minha teoria?
-Perai,
perai. – Comecei. –Alguém pode me explicar que teoria é essa?
E então
Pancop me explicou: Sua teoria é de que o rosa nos dentes pudesse ser uma marca
da borracha de um aparelho odontológico. Era muito comum, entre os jovens,
escolher borrachas coloridas para “decorar” os dentes. Pancop achava que, quem
quer que fosse o assassino, ele havia removido o aparelho da vítima. Uma
espécie de serial killer obsecado por aparelhos, que, com certeza, voltaria a
atacar.
-Sim,
sim, tudo isso que o Pancop falou estava no e-mail que eu recebi. – Disse Mary
– Mas sinto informa-los que não é verdade. Analisei as fotos, e posso garantir
que a vítima de vocês nunca usou aparelho.
-DROGA.
– Disse Pancop. – Estamos num beco sem saída, Vitale.
-Parece
que sim, Pancop.
-Você
não teria algo para beber? - Perguntei
para Mary, desesperançado.
-Olha...
Acho que... Ah, na verdade, eu tenho uma batida aqui. Um drink que fiz noite
passada, deve ter sobrado alguma coisa.
-Uma...O
que você disse? – Falou Pancop, levantando-se.
-Uma... batida. Porque?
-Eu sei quem é o assassino. – Disse Pancop,
dirigindo-se a porta. – Ou, no caso... A assassina.
Foi uma viagem longa, e Pancop se recusava a
dizer para onde estavamos indo. Finalmente, chegamos no Marapé, onde Pancop
dirigiu-se imediatamente para a casa de um antiga conhecida.
TUM TUM TUM.
Rachel Debski, antiga informante de Pancop
abriu a porta, de pijamas.
-O que está acontece... Pancop?
-Sim, Pancop. – Respondeu Pancop, colocando um
novo palito na boca. – E estou aqui para te prender, Debski!
-Eu... O que está acontecendo?
-Reconhece... ISSO? – Disse Pancop, puxando a
cabeça da novinha para fora da mochila e segurando-a pelos cabelos, na frente
de Rachel.
-Eu... Eu...
-Permita-me explicar o que aconteceu. – Disse
Pancop, andando em círculos em volta de Rachel e de mim. – Todos nós sabemos
que Rachel Debski é uma menina... Festeira. Seus exageros com alcool foram
parte do motivo pelo qual Debski foi afastada do serviço policial e passou a
servir como informante de narcóticos. – Pancop falava pausadamente, sorvendo o
momento. – E todos nós conheciamos a maior fraqueza de Debski. Não foi em uma
ou duas festas lá na delegacia que vimos a senhorita Rachel ajoelhada em uma
privada, vomitando a alma para fora.
E o que ela bebia? Ah, Rachel gostava de
cerveja, e de bons vinhos. Mas gostava mais de uma bebida muito especifica. Um
drink. Rosa. Uma bebida a base de vodka, gelo, leite condensado e tang de
morango.
Rachel sempre foi uma moça de boa família.
Nunca precisou roubar para sustentar seu vício. Mas, recentemente, sob a ordem
de você Vitale – Disse Pancop, apontando para mim – Esse tal drink rosa foi
proibido por lei. Eu lembro do seu discurso, alertando a sociedade para os
males desse drink, usando como exemplo a situação precária que tinha virado a
vida de Rachel.
Isso tudo foi a uns dois meses atrás. Tempo
mais do que suficiente para um mercado negro surgir. E quem, quem conhecia essa
bebida bem o suficiente para encabeçar o trafico?
Rachel Debski estava palida, olhava de Pancop
para mim, sem saber o que fazer.
-Rachel! Você, Rachel! – Disse Pancop,
apontando um dedo acusador em sua cara. – Você começou a fabricar para uso
próprio, mas não foi o suficiente, foi? Não. Você começou a vender. No começo,
só para amigos, em festas, conhecidos de conhecidos.
Mas o mercado foi crescendo. E você foi
atendendo pessoas que não conhecia.
Até que aconteceu. O primeiro cliente que não
pode pagar a dívida.
Você não podia deixar barato. Tinha que dar o
exemplo. Tinha que mostrar que ninguém pendurava a conta com Rachel Debski! Por
isso você foi atrás da novinha, essa infeliz moça que você viciou com a bebida
rosa, e decepou-a, e deixou-a no meio da
rua, como um cachorro! Como um cachorro, Rachel!
-Ta bom, eu admito! – Disse Rachel, cobrindo o
rosto.
-COMO UM CACHORRO!
-Eu admito! Fui eu, fui eu! – Rachel soluçava
muito.
-AU AU, RACHEL, AU AU! COMO UM CACHORRO FAZENDO
AU AU!
-Eu acho que ela ja entendeu. – Eu disse,
colocando a mão no ombro de Pancop. – Vou chamar os reforços.
Os policias chegaram, cercaram a casa. A mídia.
Familiares. Rachel escondeu o rosto com o casaco, e foi carregada, algemada,
para dentro da viatura.
-Senhor Pancop, senhor Pancop!
Era um repórter
-Pode comentar alguma coisa sobre o caso?
Pancop olhou para as cameras, os flashes de
luz, os microfones... E se permitiu um raro sorriso.
-Bem, vamos só dizer que a novinha não pode
pagar a batida – Pancop acendeu um cigarro e colocou seu óculos escuro – E
acabou abatida.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Pipoca e Cinema
Foi tudo culpa do vizinho de cima, moça. Ele resolveu fazer pipoca.
Se não fosse o vizinho, se não fosse o filme que ele deve ter alugado
na Blockbuster ali do lado de casa... Se não fosse a pipoca. Se não
fosse a vida, moça, ah, se não fosse a vida.
Mas a vida foi. E
eu fiquei, você ta vendo. Eu aqui, esse cobertor velho e esse papelão,
que era a caixa da televisão que a gente comprou lá pro novo apartamento
em Moema. E só.
Ah moça, se não fosse aquele cheiro de pipoca, moça... Te juro.
Porque o cheiro de pipoca me trouxe até aqui. Me levou do apartamento
em Moema pra essa parede escura, que fecha esse prédio velho e
interditado.
Esse prédio, moça, esse prédio era um cinema.
Você é muito nova pra lembrar, mas era, eu juro que era. Quando eu
tinha a sua idade, um pouco mais, um pouco menos. Era um desses cinemas
de rua, desses que a saída é lateral e da pra uma viela escura e suja.
Que nem essa.
E era tão bonito, o cinema. Era brilhante e era
neon, e os cartazes ficavam lá em cima, em cima da avenida, em cima do
mundo. Em cima da vida, moça, em cima de tudo, mostrando o Clark Gable, e
a Ingrid Bergman e o James Dean, e o Humprey Bogart e a Monroe e a
Bardot.
E iluminava o rosto das pessoas, moça. As pessoas na
fila, as pessoas falando, as pessoas esperando. As pessoas vivendo, que é
o que elas mais sabem fazer. Um dia aqui, um cinema lá, uma frase torta
e uma bebedeira do outro lado da cidade. Uma viagem pro interior, uma
briga com a namorada, as pessoas vivem, moça, elas vivem sempre, mesmo
quando a gente não ta olhando.
A bilheteria ficava aqui do lado.
Ah, se você tivesse tempo, mais que todo o tempo do mundo até hoje e
até depois, não ia ser tempo o suficiente pra ouvir da minha infância.
Pra ouvir da minha vida sem peso, das minhas obrigações de ser feliz,
das minhas contas atrasadas do jogo de bafo, do aluguel da roupa pra
festa, do emprego e das mulheres nos filmes e nos gibis e nas séries de
televisão, e só.
E desse cinema. Desse cinema que me puxou, no dia em que eu senti aquele cheiro de pipoca.
Porque me lembrou daqui, me lembrou a minha infância, a minha vida sem
“v” maiúsculo, e eu tive que voltar. E voltei. Voltei pra ver, pra
sentir, pra lembrar. Voltei por voltar.
Parei ali em frente,
virando a esquina, onde ficava a entrada do cinema, com as grandes
portas de madeira e as promessas de aventuras e romances do lado de
dentro.
E olhei para o prédio vazio e capenga e lembrei de ser feliz.
Lembrei de não ter que trabalhar. Lembrei de não ter que combinar
gravata com sapato. Ah, moça, eu lembrei de chegar em casa da escola e
almoçar comida da mãe e dormir a tarde toda. Lembrei de fazer casa na
árvore, que não tem hipoteca nem conta de luz, e lembrei de brincar de
carrinho sem pagar IPVA. Lembrei de acordar com febre e não ter que ir
pra escola. Lembrei de ter certeza, a mais absoluta certeza, de que
nunca ia usar equação pra nada na minha vida.
Lembrei do cheiro de pipoca na entrada do cinema.
Da promessa de duas horas de diversão, de amigos e primeiras namoradas,
coca-cola gelada e risos na hora errada. Lembrei da sala da diretora do
meu velho colégio, e lembrei de filmes de guerra e dos gritos das
atrizes dos filmes de terror.
E lembrei que lembrar dói muito.
As vezes, moça, as vezes é engraçado. A gente esquece de tanta coisa,
não é? Eu tinha esquecido do cheiro do cinema, do cheiro da pipoca.
Eu tinha esquecido de pensar em ser feliz. A gente esquece, moça, a
gente esquece de perguntar porque o sol é redondo, porque bater o pé dói
mais no frio e porque a gente tem que morrer. Depois de um tempo, a
gente esquece, e só lembra do dinheiro das crianças, do preço da
gasolina e do próximo feriado.
A gente esquece que tem tanta
coisa acontecendo no mundo, que a gente nem sabe. Tanta estrada pra
correr, tanta fogueira pra acender, tanto beijo pra beijar, e um monte
de coisas pra discutir, pra conversar. A gente esquece de tudo, e talvez
seja melhor.
Mas eu lembrei. Eu lembrei do cheiro de pipoca. E agora não da mais pra mim.
Agora eu tenho que ficar aqui moça, e você tem que ir, e reza pra Deus
pra não lembrar de nada no caminho pra casa, senão você acaba assim, que
nem eu. Acordando com o sol na cara toda manhã, batendo de frente com
uma parede fria e desgastada, tentando sentir de novo o cheiro da pipoca
de um outro dia que já passou.
terça-feira, 21 de maio de 2013
Se eu fosse louco
Se eu fosse louco o dia ia
durar pouco.
O caminho pro trabalho ia
virar cenário da minha falta de lucidez. O metrô seria um trem, que só vai,
nunca vem. Pra longe, pra bem longe onde tem rios, florestas, gente bonita e
mais ninguém.
Ah, se eu fosse louco, ao
menos só um pouco.
Minha casa ia virar
palácio, tudo seria mais fácil. Os meus filmes de comédia favoritos,
multiplicados a vários infinitos, virariam um bufão, e meu estéreo seria um
músico fantasiado tocando um velho acordeão. As ligações para o meu celular iam
todas acabar. Quem quiser me procurar que venha em pessoa e traga junto a
própria corte e um vinho, ou arrume um pombo, pena e pergaminho.
Ser louco deve ser melhor
do que ser são.
Mas então...
E meu velho violão?
Viraria uma orquestra, com certeza. Ia ser uma beleza. Minha fender de madeira
em mão, eu de pé na minha cama transformada em palco de apresentação e as
paredes gritando como mil milhões de fãs disputando minha atenção.
Daria tudo pra perder um
pouco, só um pouco dessa minha entediante razão.
Meus dias seriam bem mais
divertidos. Segunda-feira eu ia ser pirata, terça dormir na mata e quarta
acordaria um diplomata.
Na quinta iria para
Irlanda, beber e arrumar briga. Sexta iria para a França com uma amiga. Sábado
e Domingo eu passaria na Roma Antiga.
Ah, eu queria apenas uma
vez, perder essa inflexível lucidez.
E fazer da poça d’água o
Nilo, de minha velha cama um berço de ouro onde cochilo. Fazer dos filmes realidade,
fazer reencontro da saudade, passado o que é presente e presente o que é ausente.
Ouvir música no barulho da avenida, chorar de prazer com cada ferida,
reescrever cada memória mal vivida e esquecer cada despedida.
Quando eu for louco e o
mundo são, e a chuva chover pra cima e ouro brotar do chão, a vida vai ser
melhor, eu sei. Quando o fogo apagar a água e o perdão for maior que a mágoa,
eu sei. Quando “não” virar “sim” e os livros começarem pelo fim, eu sei, eu
sei, o mundo vai ser um lugar melhor pra mim.
quarta-feira, 8 de maio de 2013
Feliz Aniversário
Fazer 23... E é o primeiro aniversário de vida adulta, com
direito a diploma de faculdade, OAB e carteira assinada.
E você pensa o que? Quando ainda se sente o mesmo menino que
aprendeu o Fá, o Fá Sustenido e Sol na tua guitarra velha, pra gravar os
primeiros rascunhos do que viria a ser parte tão importante da tua vida, em um
gravador de áudio do Windows 98...
E como você vive? Sabendo que, lá no fundo, ainda é o mesmo
garoto que pedia pra ir no banheiro pra professora no meio da aula de desenho
geométrico? E, vamos falar a verdade? Ninguém tinha vontade de ir no banheiro
mesmo, a gente só queria dar uma volta no corredor da escola e fugir um pouco
da aula...
E como manter a cara séria no dia a dia? Quando você percebe
que, no fundo, ainda tem vontade de pedir direçã pro pai em cada
bifurcação na estrada? Quando acorda com febre e ainda sente o impulso de bater
na porta da mãe três vezes pra pedir pra não ir na escola, antes de lembrar que
agora você mora sozinho e ninguém perdoa um dia de trabalho perdido por uma virose
qualquer...
E agora? Agora que todo mundo cresceu e parece que você
ficou?
Não esquenta, que ninguém cresceu não. Todo mundo mantém
essa cara séria aí porque eles olham em volta e ta todo mundo de cara séria
também, com cara de que ta sabendo o que ta fazendo. Mas ninguém sabe não, e se
sobrar um leve sorriso, uma esticada no canto dos lábios, daquelas que o
pessoal tentava esconder quando ia pra sala da diretora, cai todo mundo na
gargalhada, se perguntando “o que a gente ta fazendo nesse mundo louco dos adultos?”.
Feliz aniversário, cara.
quarta-feira, 1 de maio de 2013
Entrevista de Emprego
-Pode sentar.
-Ahn... Aqui, essa cadeira mesmo?
-Tanto faz, qualquer uma.
-Ok, obrigado.
-Então. A gente ficou muito impressionado com o seu
currículo. Formação excelente, curso no exterior, Etcétera...
-Ah, obrigado.
-Agora é a hora de a gente bater um papinho, falar um
pouco de você, pra gente te conhecer melhor e tal.
-Entendi, entendi.
-Então, vamos lá. Eu vi aqui que você colocou “pró-ativo
e interessado” no seu currículo.
-Sim, sim.
-Você pode descrever um pouco melhor essas qualidades? O
que você entende como pró-atividade e interesse? Aonde você classifica isso na
sua personalidade?
-Olha, eu gosto muito de ir atrás das coisas que eu gosto
muito.
-Sei...
-...
-Mas, será que você pode ser um pouco mais específico?
-E eu tenho interesse nas coisas que eu acho
interessante.
-Tá, legal.
-...
-Mas... Ok, vamos lá: você pode me dar um exemplo, na sua
vida, de um momento em que você foi pró-ativo?
-Ah, sim. Beleza. Uma vez eu tava com vontade de comer
Burger King.
-Legal, legal.
-E não tem nenhum Burger King perto da minha casa.
-Entendi.
-Eu peguei o carro e fui até o Burger King da Santo
Amaro.
-Sei.
-...
-Mas...
-Da uns 8 quilômetros, quase. Da minha casa.
-Entendi.
-E eram umas cinco e pouco, isso. Bem na hora do rush.
-Hm.
-...
-Tá. Ok. Vamos falar um pouco da sua personalidade,
então. Você se considera uma pessoa social?
-Ah, pra caramba. Eu gosto muito de conversar, faço
amizade fácil, pode perguntar pra qualquer um.
-Legal, legal. Então você acha que vai se enturmar bem no
ambiente de trabalho, aqui?
-Ah, não, não. Eu gosto de conversar no bar.
-Sei...
-Ou em casa, por Facebook e tal.
-Hm....
-Não vejo porque conversar com as pessoas daqui. Eu nem
conheço elas. Só você. Você parece legal.
-Hm... Entendi. É, não é bem isso que eu tava falando.
-Sei.
-Mas vamos lá. E você se considera uma pessoa confiável?
Honesta?
-Ah, sim, sim.
-Fala um pouco sobre isso.
-Eu sou confiável e honesto.
-...
-...
-Tem como você falar um pouco mais a respeito? Tipo, da
um exemplo.
-Ah, tá, desculpa. Eu nunca desligo o jogo no FIFA online
quando eu to perdendo.
-Sei, e... O que?
-No FIFA, do Playstation, sabe? Quando eu to perdendo,
pode ser três a zero, quatro, cinco. Eu nunca desligo, eu jogo até o final.
-Hm.
-E quase ninguém faz isso. O pessoal sempre desliga,
quando vê que ta perdendo.
-Tá, legal. Bacana. Eu... Isso. Ok. E, assim, vamos lá, o
que você gosta de fazer?
-Ah, poxa, um monte de coisas. Eu gosto de ir no cinema,
gosto de ouvir música. Eu gosto de ficar olhando piscina quando chove, sabe?
Vendo as gotas batendo na água? Eu acho muito legal isso. Eu gosto de molhar
bolacha no leite, de andar de bicicleta.
-Ah, que legal. Legal, legal. E você acha que vai gostar
de trabalhar aqui?
-Ah, não.
-Não?
-Não, ninguém gosta de trabalhar, né?
-Ah, eu...
-Você gosta?
-Gosto, claro, o ambiente aqui é muito legal.
-Sabe um ambiente muito legal? A praia.
-Hm, bom, eu...
-Pizzarias.
-Certo, legal, foi bom falar...
-Casa de amigo em dia de jogo.
-Legal,
certo. A gente vai entrar em contato, tudo bem? A Alice vai te levar até a
porta. Alice!
-Pescar
o queijo do sanduiche com batata frita.
-Eu...
Oi?
-Pescar
o queijo que sai pra fora do sanduiche com batata frita, sabe? Eu gosto disso
também.
-Bacana.
ALICE!
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