Eu
levantei a fita amarela e preta que isolava a área e passei por baixo.
Vislumbrei mais uma vez a cena. Não era bonito.
A mulher
parecia na faixa dos dezoito anos. Dezenove, de acordo com a identificação que
encontramos na bolsa. Seu rosto era lindo: olhos azuis que fariam o mais durão
dos guerreiros espartanos fraquejar e segurar uma lágrima, lábios vermelhos e
preenchidos, porém não exagerados. Se insinuando, era isso. Labios que se
insinuavam. Deixavam promessas no ar, mas não se comprometiam a nada. Um pele
lisa e branca, e cabelos loiros escorridos.
O resto
do corpo estava do outro lado da calçada.
-Tenente,
eu já passei as informações para a perícia, eles devem...
-Não. –
Fui interrompido pela voz grave do Tenente Willians. – A pericia não vai dar
conta disso. Ninguém do batalhão vai.
Eu sabia
onde ele ia chegar. Não havia escolha. Eu odiava aquele cara, todos no batalhão
odiavam. Mas haviam algumas situações...Algumas situações que só ele sabia
resolver.
Dezenove
anos. Novinha. Era a especialidade dele.
-Oficial
Vitale. – Disse Willians, uma careta entortando seu rosto – Entre em contato
com Pancop imediatamente.
Uma ligação
e quarenta e cinco minutos depois, despontava do fim da rua a silhueta de um
homem em uma bicicleta. O barulho dos sininhos era inconfundível. Pancop havia
chegado.
-O que
temos aqui? – Perguntou Pancop, puxando o apoio da bicicleta com a perna direita
enquanto removia um palito mordido da boca.
-Ahn,
parece um...
-EU NÃO
LEMBRO DE TER PERGUNTADO MERDA NENHUMA PRA NINGUÉM. – Gritou Pancop, chutando a
própria bicicleta no chão.
-Ahn...
Na verdade, senhor Pancop – Começou um oficial que até então se mantinha em
silêncio – Você acabou de perguntar o que temos aqui...
-Ah... –
Disse Pancop, olhando em volta. – É, sim, é verdade. Muito esperto você,
oficial... – Disse, esperando a resposta
-Oficial
Teddy, senhor Pancop.
-Muito
esperto oficial Teddy. Agora levante a minha bicicleta e saia do caminho. –
Pancop passou por baixo da faixa de isolamento. – O que temos aqui, Vitale?
De todas
as pessoas da policia, a única por quem Pancop nutria respeito e tratava com
consideração era eu. Talvez fosse porque sempre tenha respeitado meu trabalho
como policial. Talvez simplesmente tenha ido com a minha cara. Talvez tenha
sido porque, na única vez em que levantou a voz pra mim, eu arranquei seu olho
esquerdo com um copo de requeijão quebrado.
-Parece
que ela foi encontrada hoje de manhã, já nesse estado. – Comecei – Não temos
muita informação ainda, mas a pericia deve terminar o trabalho até o fim da
tarde.
-A
perícia... – Disse Pancop, com desprezo – Quem precisa da perícia?
Pancop
se abaixou e pegou a cabeça da garota nas mãos. Levantou-se e ficou
encarando-a, face a face, segurando-a pelas duas bochechas, como se fosse
beija-la.
-Olhos
bonitos. Pele lisinha, sem cravos. Eu diria... Dezenove anos?
Houve um
murmúrio de espanto entre os policiais. Quando se tratava de novinhas, Pancop
era, de fato, genial.
-Correto,
Pancop. Dezenove anos, de acordo com o RG. – Respondi.
-Do
jeito que eu gosto. – Disse Pancop, fechando os olhos e abaixando a cabeça da
garota em direção a suas partes intimas.
-Ahn,
Pancop... – Cutuquei seu ombro, e ele pareceu voltar a realidade.
-Oi?
Eu... Certo, certo. Temos que esperar o resultado da perícia. – Pancop olhou em
volta, colocou a cabeça decepada embaixo do braço esquerdo e disparou – Eu vou
levar isso aqui comigo... Para análise.
Montou em
sua bicicleta e disparou, o barulho dos sininhos se distanciando enquanto ele
pedalava rumo ao labirinto sujo e caótico que era o centro de Santos.
Naquela
noite, enquanto eu terminava minha xícara de chá e me preparava para dormir, o
telefone tocou.
-Alo? –
Atendi, com a voz cansada.
-É
Pancop. – Soou a voz arrastada do outro lado da linha – Me encontre no Jutas em
dez minutos.
-Eu...
Pancop, são duas horas da manhã!
-Não me
importa. Pare de ser menininha. Levante da cama e me encontre lá em dez minutos.
-Não, o
problema não é esse. É que o Jutas já ta fechado.
-Ah. – A
voz hesitou. – Ok, Karaoke então.
Relutante,
coloquei uma calça e uma camisa velha e abri a porta de casa. A noite ia ser
longa.
I don’t care who
you are
Where you are from
Don’t care what you
did
As long as you love
me
O
Karaoke era um bar amplo com iluminação indireta. Longas mesas de mármore se
espalhavam pelo ambiente, rodeadas de cadeiras estofadas em veludo e penas de
ganso. No canto, uma velha senhora cantava uma melodia no palco.
Encontrei
Pancop na sua mesa habitual, tomando seu drink de sempre: Cachaça com cerveja
conhaque vodka absinto whisky tequila e toddynho light de morango.
-Está
diminuindo na bebida? - Perguntei, notando que ele havia pedido uma dose
simples, não dupla.
-A noite
é uma criança. – Respondeu Pancop, virando o copo.
-Na
verdade não. Hoje é quinta, o Karaoke fecha daqui a uma hora.
-É
verdade. – Pancop levantou o copo vazio – Garçom, mais quatorze doses.
-Eu vou
tomar a mesma coisa – Falei, virando para o garçom.
-Então...
Faz tempo, desde a última vez que estivemos aqui. Você lembra? – Perguntei,
olhando de canto de olho para Pancop, esperando uma reação.
-Eu não
gosto de falar sobre isso. – Respondeu Pancop, acendendo um cigarro.
-Claro,
claro... É só que... A música que está tocando... – Desconversei.
Na
verdade, Pancop estava afastado da polícia há oito meses. Seu último caso havia
sido exatamente no Karaoke. Foi no Karaoke que tudo deu errado. E a música, a
música que a mulher estava cantando... Era a mesma daquela noite. Da noite em
que tudo deu errado.
-Sabe,
seria bom você falar sobre isso, Pan...
-EU JÁ
FALEI QUE NÃO! - Disse Pancop, batendo
na mesa, ao mesmo tempo que o garçom servia as 28 doses, o que foi infeliz.
-Eu
trago um pano. – Disse o garçom, virando nos calcanhares para sair.
-Não
precisa – Respondeu Pancop, lambendo a mesa. – Nos deixe em paz por um minuto,
por favor.
O garçom
nos deixou sozinhos. Pancop levantou o rosto da mesa e limpou a boca com a
parte de trás da mão. – Eu descobri algumas coisas. Sobre a novinha.
-O que?
– Perguntei, interessado.
-Veja. –
Pancop puxou uma mala para cima da mesa e abriu o zipper. Dentro, estava a
cabeça que eu havia visto mais cedo, na cena do crime.
-Você
está louco? Esconda isso!
-Pelo
amor de Deus, Vitale, é o Karaoke aqui. – Disse Pancop, desmerecendo minhas
preocupações – Só psicopatas e pervertidos frequentam esse lugar.
-Ok, ok.
– Respondi, me dando por vencido. - O
que você queria me mostrar?
-Está
vendo aqui, na boca dela? – Disse Pancop, apontando.
-Sim,
sim, eu... Você passou batom nos labios dela, Pancop?
-Eu...
Claro que... – Pancop pareceu sem graça, mas se recuperou logo – Passei. Mas
isso não vem ao caso. Olhe os dentes.
-Sei, o
que tem os dentes? – Perguntei, me inclinando para enxergar melhor.
-Percebe
que eles estão de outra cor?
-Estão
vermelhos, Pancop. Mas isso era de se esperar – Eu disse, indignado com a inocência
do meu amigo – Ela deve ter engasgado no próprio sangue quando estava sendo
decepada.
-Você me
desaponta, Vitale. – Disse Pancop, apagando seu cigarro na mesa. – Olhe de
perto, seus dentes são estão vermelhos. Estão rosa.
Olhei de
perto. Era verdade, os dentes estavam rosa. O que significava aquilo?
-O
que... Mas porque rosa?
-Exatamente.
– Respondeu Pancop, pensativo – Porque rosa. Foi exatamente essa a pergunta que
eu me fiz depois, tomando banho.
-Depois
do que?
-De...
Jogar Fifa. – Pancop levantou-se. – Mas eu acho que eu tenho a resposta. Venha
comigo
Andamos
até o lado de fora do bar e Pancop acendeu outro cigarro. – Vamos fazer uma
pequena viagem.
-Para
onde? – Perguntei.
-Não é
longe. – Respondeu Pancop, colocando o capacete e sentando na bicicleta – Me
siga.
Acompanhei
Pancop até uma clinica de dentistas, do lado de onde havia acontecido o crime.
Ele desmontou da bicicleta e tocou a campainha.
-Pancop,
são 3 horas da manhã, ninguém vai... – Comecei, mas fui surpreendido por um
barulho de tranca se abrindo e um vulto aparecendo do outro lado da porta.
-O que
vocês querem? – Perguntou a mulher do outro lado.
-Fazer
algumas perguntas, Mary, se não tiver problemas.
-Pancop,
você de novo... – Disse a mulher, cansada. – Pois bem, subam.
O
consultório estava vazio. Um cobertor e um travesseiro em cima de um dos sofás
da recepção fazia as vezes de cama adaptada.
Me
lembrei que Pancop tinha contatos e especialistas para consultar na cidade
inteira, quando estava na ativa. Mary devia ser uma informante-dentista.
-Mary,
você recebeu meu e-mail? – Perguntou Pancop.
-Com as
fotos horríveis daquela cabeça? Sim, recebi.
-E os
dentes rosa? O que você acha da minha teoria?
-Perai,
perai. – Comecei. –Alguém pode me explicar que teoria é essa?
E então
Pancop me explicou: Sua teoria é de que o rosa nos dentes pudesse ser uma marca
da borracha de um aparelho odontológico. Era muito comum, entre os jovens,
escolher borrachas coloridas para “decorar” os dentes. Pancop achava que, quem
quer que fosse o assassino, ele havia removido o aparelho da vítima. Uma
espécie de serial killer obsecado por aparelhos, que, com certeza, voltaria a
atacar.
-Sim,
sim, tudo isso que o Pancop falou estava no e-mail que eu recebi. – Disse Mary
– Mas sinto informa-los que não é verdade. Analisei as fotos, e posso garantir
que a vítima de vocês nunca usou aparelho.
-DROGA.
– Disse Pancop. – Estamos num beco sem saída, Vitale.
-Parece
que sim, Pancop.
-Você
não teria algo para beber? - Perguntei
para Mary, desesperançado.
-Olha...
Acho que... Ah, na verdade, eu tenho uma batida aqui. Um drink que fiz noite
passada, deve ter sobrado alguma coisa.
-Uma...O
que você disse? – Falou Pancop, levantando-se.
-Uma... batida. Porque?
-Eu sei quem é o assassino. – Disse Pancop,
dirigindo-se a porta. – Ou, no caso... A assassina.
Foi uma viagem longa, e Pancop se recusava a
dizer para onde estavamos indo. Finalmente, chegamos no Marapé, onde Pancop
dirigiu-se imediatamente para a casa de um antiga conhecida.
TUM TUM TUM.
Rachel Debski, antiga informante de Pancop
abriu a porta, de pijamas.
-O que está acontece... Pancop?
-Sim, Pancop. – Respondeu Pancop, colocando um
novo palito na boca. – E estou aqui para te prender, Debski!
-Eu... O que está acontecendo?
-Reconhece... ISSO? – Disse Pancop, puxando a
cabeça da novinha para fora da mochila e segurando-a pelos cabelos, na frente
de Rachel.
-Eu... Eu...
-Permita-me explicar o que aconteceu. – Disse
Pancop, andando em círculos em volta de Rachel e de mim. – Todos nós sabemos
que Rachel Debski é uma menina... Festeira. Seus exageros com alcool foram
parte do motivo pelo qual Debski foi afastada do serviço policial e passou a
servir como informante de narcóticos. – Pancop falava pausadamente, sorvendo o
momento. – E todos nós conheciamos a maior fraqueza de Debski. Não foi em uma
ou duas festas lá na delegacia que vimos a senhorita Rachel ajoelhada em uma
privada, vomitando a alma para fora.
E o que ela bebia? Ah, Rachel gostava de
cerveja, e de bons vinhos. Mas gostava mais de uma bebida muito especifica. Um
drink. Rosa. Uma bebida a base de vodka, gelo, leite condensado e tang de
morango.
Rachel sempre foi uma moça de boa família.
Nunca precisou roubar para sustentar seu vício. Mas, recentemente, sob a ordem
de você Vitale – Disse Pancop, apontando para mim – Esse tal drink rosa foi
proibido por lei. Eu lembro do seu discurso, alertando a sociedade para os
males desse drink, usando como exemplo a situação precária que tinha virado a
vida de Rachel.
Isso tudo foi a uns dois meses atrás. Tempo
mais do que suficiente para um mercado negro surgir. E quem, quem conhecia essa
bebida bem o suficiente para encabeçar o trafico?
Rachel Debski estava palida, olhava de Pancop
para mim, sem saber o que fazer.
-Rachel! Você, Rachel! – Disse Pancop,
apontando um dedo acusador em sua cara. – Você começou a fabricar para uso
próprio, mas não foi o suficiente, foi? Não. Você começou a vender. No começo,
só para amigos, em festas, conhecidos de conhecidos.
Mas o mercado foi crescendo. E você foi
atendendo pessoas que não conhecia.
Até que aconteceu. O primeiro cliente que não
pode pagar a dívida.
Você não podia deixar barato. Tinha que dar o
exemplo. Tinha que mostrar que ninguém pendurava a conta com Rachel Debski! Por
isso você foi atrás da novinha, essa infeliz moça que você viciou com a bebida
rosa, e decepou-a, e deixou-a no meio da
rua, como um cachorro! Como um cachorro, Rachel!
-Ta bom, eu admito! – Disse Rachel, cobrindo o
rosto.
-COMO UM CACHORRO!
-Eu admito! Fui eu, fui eu! – Rachel soluçava
muito.
-AU AU, RACHEL, AU AU! COMO UM CACHORRO FAZENDO
AU AU!
-Eu acho que ela ja entendeu. – Eu disse,
colocando a mão no ombro de Pancop. – Vou chamar os reforços.
Os policias chegaram, cercaram a casa. A mídia.
Familiares. Rachel escondeu o rosto com o casaco, e foi carregada, algemada,
para dentro da viatura.
-Senhor Pancop, senhor Pancop!
Era um repórter
-Pode comentar alguma coisa sobre o caso?
Pancop olhou para as cameras, os flashes de
luz, os microfones... E se permitiu um raro sorriso.
-Bem, vamos só dizer que a novinha não pode
pagar a batida – Pancop acendeu um cigarro e colocou seu óculos escuro – E
acabou abatida.
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