quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Luz, câmera, ação

Vou mandar fazer uma vida igual a nossa, meu amor.
Pode escrever aí, vou chamar roteirista, figurinista, cenógrafo e um grande diretor.
E vai ganhar até Oscar, você vai ver. Tudo aquilo que a gente viveu eu vou viver, cada lágrima, alegria e emoção, com direito a luz, câmera e ação.
Vai ter uma atriz famosa pra viver o seu papel. E ela vai aprender tudo que eu nunca esqueci sobre você. O jeito como você sorria, andava, me olhava meio de lado quando a gente brigava. E eu, também, vou fazer tudo igual. Vai ser tudo relançado, do começo até o final. Nossa vida, em edição especial.
Nosso primeiro beijo, nossas brigas e intrigas, nossa vida. Nossos apelidos, linda, lindo, paixão, querida. Está tudo no roteiro, o nosso amor inteiro, todo escrito a mão e enviado para o estúdio, esperando aprovação.
E se calhar de me deixarem dirigir, ou no mínimo editar, já garante o seu ingresso, não deixa de comprar, uma poltrona bem na frente, pra quando o filme estrear. Pra reviver no escuro, com pipoca e coca-cola, tudo aquilo que passou. E fica até depois dos créditos, porque o filme não acabou. Se deixar vou colocar, bem escondido pra ninguém notar, um final diferente, só pra gente. Com beijo na chuva e despedida e música de fundo, e todo mundo vai chorar, meu amor. O final que a gente nunca teve a gente finalmente vai ganhar, se não no lançamento original, pelo menos na versão do diretor.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Existe um lugar para você se esconder



Existe um lugar para você se esconder. Fica no caminho entre o trabalho e a casa. Fica nas esquinas nubladas entre a Avenida Rebouças e todas aquelas ruazinhas que vão dar no Jardins. Fica nos olhares parados dos motoristas, nas bugigangas penduradas em vendedores ambulantes. Fica em uma nova estação de rádio, que você nunca ouviu, parado no trânsito. Um lugar em que existem milhões de outras pessoas, fazendo milhões de outras coisas, e nenhuma delas tem a menor ideia de quem é você ou porque você resolveu usar a gravata vermelha hoje. Fica nas pequenas mercearias e relojoarias de bairro, nos grandes supermercados e na entrada dos shoppings. Fica dentro do seu carro, com você, sentado no banco vazio
 do passageiro.

Existe um lugar para você se esconder.

Existe um lugar para você se esconder.  Um lugar entre o sol e a lua, quando a madrugada ainda não tem tanta certeza se quer ou não virar manhã. Hesita entre a escuridão esgotada da noite e a claridade adolescente da manhã. Uma terra de ninguém, quando uns poucos passarinhos ensaiam seus primeiros cantos, ainda em dúvida se devem ou não anunciar um novo dia.

Existe um lugar para você se esconder.

Existe um lugar para você se esconder. Fica na praia em um dia de chuva. Fica no sussurro raivoso do mar, na sensação gelada da camisa molhada grudando contra o corpo. Fica no vento que levanta o cabelo, e fica nos milhões de buraquinhos que as gotas de chuva fazem na água do mar. Fica nos olhos fechados, na gota escorrendo pelo rosto e pingando na areia. Fica no avião distante, sugerindo duzentas vidas viajantes e uma promessa de melhores lugares.

Existe um lugar para você se esconder.

Gigio



AGORA TODO MUNDO CALA A BOCA.
Nana não costumava falar durante as reuniões de família. Ficava quieta, no seu canto, as vezes sorria para algum comentário, abanava a cabeça, concordando, mas raramente falava. Dessa vez falou. No meio da discussão a respeito do novo reforço do Palmeiras, gritou:
-AGORA TODO MUNDO CALA A BOCA.
Nana olhou para o neto, Giovane, que segurava o garfo congelado, a boca aberta.
-Gigio, escuta, tem uma coisa que você precisa saber.
-Mamãe...- Começou Odair, pai de Gigio, mas Nana continuou.
-Ele precisa saber, Odair. Já faz quinze anos.
-Saber o que, vó? – Gigio colocara o garfo de volta no prato, curioso para saber o que a família havia escondido dele desde que nascera.
-Você não é filho do seus pais, Gigio.
-Mamãe, não! – Odair começou, mas Clara segurou a mão do marido. –Talvez Nana esteja certa, Odair. Ele ia descobrir eventualmente.
-Como assim eu não sou filho dos meus pais?
-Quando você tinha poucos dias, foi encontrado em uma lixeira perto de um hospital Gigio.
Silêncio na mesa. A família inteira evitava o olhar de Giovane, que olhava para a avó sem compreender.
-Meus pais me encontraram na lixeira de um hospital?
-Não. Foi uma enfermeira que te encontrou. Ela cuidou de você por seis meses, mas não tinha dinheiro para manter um filho, então, uma assistente social te levou para um orfanato, Gigio. – Nana falava, enquanto enchia outra taça de vinho.
-Vocês me adotaram de um orfanato? – Gigio perguntou, quase gritando, olhando para os pais.
-Não, um velho cientista armênio te adotou, ele precisava de um bebê para fazer experiências genéticas eugênicas. Você foi resgatado das mãos dele por um policial alguns meses depois. – Clara disse, enquanto se servia de mais batata.
-EU...O QUE? O VOVÔ ME SALVOU?
-Não, seu avô era militar, não policial. O policial te vendeu para um circo no seu aniversário de um ano. – Odair tentou evitar os olhos do filho enquanto falava.
-PARA UM CIRCO? EU, COMO...
-Um casal de malabaristas cuidou de você até o seu aniversário de três anos, quando um jovem casal foi visitar o circo e ficou comovido com aquele bebê, brincando num monte de estrume de elefante. – Clara olhou para Odair sorrindo, enquanto dizia essas palavras.
-Vocês...Eram vocês?
-Não. – Começou Augusto, o tio – Era um casal de viciados em crack. Eles te venderam por duzentos reais e um cachimbo usado.
-VOCÊS ME COMPRARAM? – Gigio gritou para os pais, ficando em pé.
-Não, você foi comprado por uma empresa de desinfetantes ilegal que usava gordura humana para fazer sabão. Por sorte, seu tio era fiscal da vigilância sanitária na época e te encontrou.
-E – Continuou Augusto – Como eu sabia que a Clara não podia ter filhos, conversei com ela e com o Odair e eles aceitaram te criar.
Silêncio na mesa. Nana serve-se de mais uma taça de vinho. Gigio parece em estado de choque. Lágrimas correm por seus olhos, mas ele não diz nada. De repente, se levanta e sai correndo para o quarto, gritando.
Por algum tempo, ninguém diz nada. Aos poucos, a família volta a comer. Após alguns minutos, o primo Cesar diz, de boca cheia – Quando a gente conta que era brincadeira?

Sem Título

Procuro teu rosto nas multidões
da Avenida Paulista
Te encontro duas ou três vezes por semáforo
Em rostos desconhecidos

Procuro teu sorriso no cruzamento
da Brasil com a Rebouças
Fechando o vidro pro menino que vende drops
O mundo é tão estranho

Procuro você nos velhos restaurantes
E bares que guardam memórias
De dias mais felizes ao teu lado
Quando quase tudo era azul

Procuro você no meu quarto
Na minha cama, meu sofá, embaixo do meu prédio
Onde via teu rosto da janela e corria calçar o velho All Star
E descia pra te dar um beijo

Mas não te encontro mais, menina

Quando criança os adultos já falavam
"se perder no shopping fica no mesmo lugar
espera parado, não se mexe, até vir alguém te procurar"

Entre avenidas e cruzamentos e velhos restaurantes e meu quarto
Eu vou parar, quieto, obediente, eu vou parar
Entre memórias e rostos e semáforos eu vou parar
Esperando você me encontrar

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Repolho



-Você gosta de repolho? Eu adoro repolho, hahaha. É a minha única coisa estranha, juro.
Foi uma das primeiras coisas que ela falou pra ele. E, é verdade, ele achou esquisito, mas aquela altura ele já tinha visto seu sorriso, e percebido o jeito como ela prendia o cabelo em cima da cabeça quando ia fazer alguma coisa séria. Era tarde demais.
Deu que começaram a namorar, e até apelidinhos ridículos fizeram um pro outro (repolinho e repolinha, mas ele não contava pra ninguém). Quantas vezes não se pegou pensando, com a cabeça longe, na frente do computador do escritório, no jeito como ela ria, sozinha, deitada na cama com ele, ou na mesa da cozinha, na sala, vendo televisão, e falava: “Repolho. Até a palavra é engraçada, né? Hahaha, repolho”.
E ele ria com ela. E ria sozinho, no trabalho. Repolho. Era engraçada mesmo, a maldita palavra.
Foram morar juntos, casaram. Ele, ela e os repolhos, reais e linguísticos. Ela adorava cozinhar com repolho. Quase todos os dias, na mesa de jantar, era repolho com alguma coisa. Carne com repolho, Repolho refogado. Só de domingo que não tinha repolho, porque pediam pizza (teve a vez que entrou no quarto e pegou o flagra: ela, no telefone, sussurrando, “pizza de repolho não tem, né?”. Ficou quase o dia todo sem falar com ele, de vergonha).
-Vou chegar um pouco mais tarde hoje, tenho que passar no Dr. Márcio para pegar
Os exames, ok amor?
Foi a última frase despreocupada da vida dos dois.
Ela cuidou dele. Cuidou durante os quase doze meses em que ele foi diminuindo, em todos os sentidos. No final, dava até comida para ele na cama (sopa de repolho, a sua favorita). Ela sabe que provavelmente não foi isso, mas, na memória, as últimas palavras dele, já sem conseguir levantar da cama, foram “Hahaha. Repolho. É engraçado mesmo”.
E a casa ficou vazia.
Foi só quase um ano depois que ela teve coragem de entrar no quartinho onde ele trabalhava, às vezes, de casa. Com um suspiro, começou a juntar os papéis, os fichários, as canetas e os livros, e foi colocando tudo em caixas.
Parou na frente do computador. Hesitou. Hesitou, e hesitou mais um pouco, mas foi vencida pela imprudência, e abriu a tela do notebook.
Documentos, fotos, pastas, e, ali, no canto esquerdo, um numerozinho vermelho indicava 1 e-mail não lido.
Vencida, de novo, pela imprudência da saudade, ela clicou. Abriu-se a página inicial. Ele não usava aquele e-mail a tantos anos, que mensagem nova seria aquela?
Com os dedos trêmulos, ela direcionou o mouse até o botão “Caixa de Entrada” e, olhos fechados, clicou.
“Lose Weight Now With This Secret From Japanese Scientists.”
Era um spam. A última mensagem que seu marido recebeu era uma mala direta sobre perda de peso.
Frustrada, começou a fechar o notebook, mas parou na metade do caminho. Embaixo da mensagem não lida, uma série de e-mails da mãe dele. Olhou a data do último: 28 de Dezembro de 2012. Aquilo era de algumas semanas depois do começo de namoro dos dois. O que será que eram aquelas mensagens?
Já vencida e nocauteada pela imprudência, abriu a mais antiga, de 14 de Dezembro (o dia em que começaram a namorar)e, a partir dela, foi lendo, de uma em uma, até a mais recente.



De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Como assim, como faz pra repolho ficar gostoso? Você odeia repolho. Não podia nem sentir o cheiro que passava mal! Que ta acontecendo, filho?

Bjos,
Mamãe






De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Meu Deus, filho, que frescura, explica pra ela, ela vai entender. Quem ama faz sacrifícios. Vai passar o resto da vida comendo o que não gosta por causa de mulher?

Bjos,
Mamãe





De: Mãe
Para: Paulo Ricardo


Não deu certo do jeito que eu te falei pelo telefone? E se misturar na comida, com outra coisa? Vou procurar uma receita legal pra você, e te mando por aqui.

Bjos, Mamãe






De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Anx. repolho_ao_forno.pdf

Filho, estou mandando em anexo a receita. Tenta essa, fica gostoso.


Bjos,
Mamãe



De: Mãe
Para: Paulo Ricardo


Tentou com o tempero que eu te falei pelo telefone?


De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Ai, meu filho, então desiste. Se não não, não gosta. Nunca vai gostar. Acho que você tem que ver o que é melhor pra você.

Beijos,
Mamãe




De: Mãe
Para: Paulo Ricardo

Você não tem jeito mesmo, hein? Bom, boa sorte, então.

Beijos,
Mamãe



Devagar, ela foi abaixando a tela do notebook. Com um “click” baixo, o aparelho se fechou e apagou, esvaziando o quarto do “vruuum” baixinho que fazia o processador.
Em silêncio, levantou, terminou de recolher as coisas na caixa, apagou a luz e fechou a porta do quartinho.
Limpou os olhos, deitou a cabeça na cama e dormiu. E naquela casa nunca mais se comeu repolho.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

É a vida

É o café e o pão pela manhã
É a viagem de familia para Salvador
É uma estrada de terra no fim da cidade
É uma velha amizade, é um novo amor

É um livro de estudos perdido no armário
Da faculdade que não terminou
É uma carta de amor rasgada e assinada
Por alguém que você nunca amou

É uma fita cassete que guarda memórias
Dos amigos de escola do seu avô
Um papel de presente dourado e amassado
De um jantar de natal que já passou

É a casa no fim da rua, Um cadarço amarrado
uma bola de couro, um chaveiro, um olhar
Um vizinho, uma rosa, uma noiva sorrindo na beira do altar

É uma moeda na fonte, uma estrela cadente,
Um cachorro sem dono, um amigo, um parente um pedaço de pão
É sentir o calor da fogueira de uma festa de São João

domingo, 25 de novembro de 2012

Naná,





Ontem, saindo da estação Santa Cecília do metrô, a caminho de sua casa nova, pensava em duas coisas. Uma delas era você. A outra era a cidade de São Paulo.
Pensei (concluí o que já sabia, na verdade) que a cidade de São Paulo sempre me trouxe a sua imagem. Desde muito cedo, quando você ainda estava com o Antonio, e íamos todos para aquele velho apartamento no Anhangabaú passar noites bebendo vodka barata e jogando conversa fora, como uma versão decadente de um episódio de Seinfeld. O centro de São Paulo me trazia não a imagem do Antônio ou do Luis (alias, se me viesse a imagem de algum deles, confesso que talvez eu não soubesse reconhecer qual dos dois era), que eram os donos do apartamento. Tampouco me trazia a imagem da Isa, que morava em São Paulo também. Não. São Paulo sempre me lembrou você.
Não sei por que. Você, como eu, não nasceu aqui. Viemos de fora, subimos a serra com a mochila nas costas (não foi ouvindo Bittersweet Symphony como você queria, mas são coisas da vida), tentando desesperadamente percorrer essa distancia entre a vida mundana e repetitiva do Canal 3 e as promessas de aventura e independência de São Paulo.
Mas, enquanto você recebeu São Paulo com um grande abraço e um beijo na boca (pegando na bunda e tudo), eu fui receoso. Cheguei, tímido, andando curvado e assustado por grandes avenidas e viadutos, com medo de ser engolido por todo esse pavimento. São Paulo me assustava.
Você virou parte da cidade. Cruzava os camelôs e o trânsito com a maior naturalidade do mundo.
Acho que é por isso que a cidade de São Paulo me trás a sua imagem. Especialmente o centro. Os prédios de arquitetura antiga, o cheiro cinza de churrasco barato, os velhos fumando e bebendo no pé da calçada, as filas nas lotéricas e os elevadores antiquados. Tudo isso me trás você a cabeça, porque é tudo que, em São Paulo, me fascinava tanto quanto me assustava. De muitas formas diferentes, eu ainda sou aquele menino da praia, acostumado a andar quatro quadras para chegar em qualquer lugar, olhando assustado para todos esses carros e esses prédios, sem entender muito bem como funciona a vida aqui nessa cidade esquisita. Mas, quando penso em você, e na relação que você tem com São Paulo, me acalmo. Me trás uma certa paz saber que você entende essa cidade, que você ama essa cidade, e que você é irremediavelmente parte dela.
Minha relação com São Paulo talvez nunca vá ser perfeita. Não vejo passando a vontade incontrolável que eu tenho, todas as sextas-feiras, de pegar o carro e descer a serra. A visão da Avenida Bandeirantes se sobrepondo a Ricardo Jafet nunca vai me trazer o sorriso no rosto que me trás a velha escultura do peixe na entrada de Santos. Mas tudo bem. Tudo bem porque, apesar de todos os nossos problemas, eu e São Paulo aprendemos a nos entender. Estamos em paz um com o outro. Temos uma amiga em comum.


Feliz aniversario, Ná. =)