-Você gosta de repolho? Eu adoro repolho, hahaha. É a
minha única coisa estranha, juro.
Foi uma das primeiras coisas que ela falou pra ele. E, é
verdade, ele achou esquisito, mas aquela altura ele já tinha visto seu sorriso,
e percebido o jeito como ela prendia o cabelo em cima da cabeça quando ia fazer
alguma coisa séria. Era tarde demais.
Deu que começaram a namorar, e até apelidinhos ridículos
fizeram um pro outro (repolinho e repolinha, mas ele não contava pra ninguém).
Quantas vezes não se pegou pensando, com a cabeça longe, na frente do
computador do escritório, no jeito como ela ria, sozinha, deitada na cama com
ele, ou na mesa da cozinha, na sala, vendo televisão, e falava: “Repolho. Até a
palavra é engraçada, né? Hahaha, repolho”.
E ele ria com ela. E ria sozinho, no trabalho. Repolho.
Era engraçada mesmo, a maldita palavra.
Foram morar juntos, casaram. Ele, ela e os repolhos,
reais e linguísticos. Ela adorava cozinhar com repolho. Quase todos os dias, na
mesa de jantar, era repolho com alguma coisa. Carne com repolho, Repolho
refogado. Só de domingo que não tinha repolho, porque pediam pizza (teve a vez
que entrou no quarto e pegou o flagra: ela, no telefone, sussurrando, “pizza de
repolho não tem, né?”. Ficou quase o dia todo sem falar com ele, de vergonha).
-Vou chegar um pouco mais tarde hoje, tenho que passar no
Dr. Márcio para pegar
Os exames, ok amor?
Foi a última frase despreocupada da vida dos dois.
Ela cuidou dele. Cuidou durante os quase doze meses em
que ele foi diminuindo, em todos os sentidos. No final, dava até comida para
ele na cama (sopa de repolho, a sua favorita). Ela sabe que provavelmente não
foi isso, mas, na memória, as últimas palavras dele, já sem conseguir levantar
da cama, foram “Hahaha. Repolho. É engraçado mesmo”.
E a casa ficou vazia.
Foi só quase um ano depois que ela teve coragem de entrar
no quartinho onde ele trabalhava, às vezes, de casa. Com um suspiro, começou a
juntar os papéis, os fichários, as canetas e os livros, e foi colocando tudo em
caixas.
Parou na frente do computador. Hesitou. Hesitou, e
hesitou mais um pouco, mas foi vencida pela imprudência, e abriu a tela do
notebook.
Documentos, fotos, pastas, e, ali, no canto esquerdo, um
numerozinho vermelho indicava 1 e-mail não lido.
Vencida, de novo, pela imprudência da saudade, ela clicou.
Abriu-se a página inicial. Ele não usava aquele e-mail a tantos anos, que
mensagem nova seria aquela?
Com os dedos trêmulos, ela direcionou o mouse até o botão
“Caixa de Entrada” e, olhos fechados, clicou.
“Lose
Weight Now With This Secret From Japanese Scientists.”
Era um spam. A última mensagem que seu marido recebeu era
uma mala direta sobre perda de peso.
Frustrada, começou a fechar o notebook, mas parou na
metade do caminho. Embaixo da mensagem não lida, uma série de e-mails da mãe
dele. Olhou a data do último: 28 de Dezembro de 2012. Aquilo era de algumas
semanas depois do começo de namoro dos dois. O que será que eram aquelas
mensagens?
Já vencida e nocauteada pela imprudência, abriu a mais antiga,
de 14 de Dezembro (o dia em que começaram a namorar)e, a partir dela, foi
lendo, de uma em uma, até a mais recente.
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Como assim, como faz pra repolho ficar gostoso? Você
odeia repolho. Não podia nem sentir o cheiro que passava mal! Que ta acontecendo,
filho?
Bjos,
Mamãe
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Meu Deus, filho, que frescura, explica pra ela, ela vai
entender. Quem ama faz sacrifícios. Vai passar o resto da vida comendo o que
não gosta por causa de mulher?
Bjos,
Mamãe
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Não deu certo do jeito que eu te falei pelo telefone? E
se misturar na comida, com outra coisa? Vou procurar uma receita legal pra
você, e te mando por aqui.
Bjos, Mamãe
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Anx. repolho_ao_forno.pdf
Filho, estou mandando em anexo a receita. Tenta essa,
fica gostoso.
Bjos,
Mamãe
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Tentou com o tempero que eu te falei pelo telefone?
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Ai, meu filho, então desiste. Se não não, não gosta. Nunca
vai gostar. Acho que você tem que ver o que é melhor pra você.
Beijos,
Mamãe
De: Mãe
Para: Paulo Ricardo
Você não tem jeito mesmo, hein? Bom, boa sorte, então.
Beijos,
Mamãe
Devagar, ela foi abaixando a tela do notebook. Com um
“click” baixo, o aparelho se fechou e apagou, esvaziando o quarto do “vruuum”
baixinho que fazia o processador.
Em silêncio, levantou, terminou de recolher as coisas na
caixa, apagou a luz e fechou a porta do quartinho.
Limpou os olhos, deitou a cabeça na cama e dormiu. E naquela
casa nunca mais se comeu repolho.
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