quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Daqui de Cima


Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Foi o moço de gravata que mandou eu vir praqui pra cima. E quem mandou ele mandar foi o outro moço, o de terno. Quem mandou no de terno eu não sei, mas eles passam tudo aqui embaixo, e eu vejo tudo eles passando daqui de cima. Feito Jesus no corcovado. Só não abro os braço pra num cair.
O pessoal já foi embora da construção, mas eu gosto de ficar. É gostoso aqui em cima. É bonito ver o sol caindo ali atrás dos prédio dos patrão, com varanda e piscina. As vezes aparece um ou outro ali por fora, umas criança, esposa também. Opa, vento. Segura, cuidado pra não cair. Eu que não morro na contramão, atrapalhando o tráfego.
Já faz um tempão que ta construindo esse prédio daqui. Quando eu comecei, já tava na metade. Hoje já tem pra mais de dez andar, e ta subindo, e subindo. Eu comecei vendo o pôr do sol lá de baixo, a construção era pequenininha. Dava pra gritar lá pro chão que se ouvia. Agora já ta tão alto que ninguém ouve. Mas eu falo mesmo assim, pra distrair, né? Quando bate vento, parece que as palavra que eu falo vão com ele. E deixa elas ir pra onde quiser.

Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Tá bonita a vida. Ta legal. Eu tenho esposa, filho saudável, dinheiro, até apartamento com varanda bonitão que nem esse aqui. Tá boa a vida. Mas sei lá, chega fim de tarde, sei lá. É o cheiro de alho picado, eu acho. É, o cheiro de alho picado, de começo de jantar, que fode com a minha cabeça. Todo fim de tarde. Eu sei que chegou o fim de tarde pelo cheiro do alho que ela ta picando. E depois o barulho, aquele “sssshhhh” do alho na frigideira. Bate aquela puta depressão. O cheiro do alho picado anuncia o começo do fim do dia. Não vai acontecer mais nada. Só o jantar, a novela, e dormir. E aí amanhã começa tudo igual, puta que o pariu. E esse prédio em construção aqui em frente, não vai ficar pronto nunca?
Ta foda. Cinquenta e quatro anos. É ano pra caralho. Eu to velho. Minha vida ta começando a cheirar a alho picado.

Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Não volto pra casa hoje, tem samba. Volto, né, mas volto tarde. No começo era bom, voltar tarde assim do samba, e só se joga no sofá e apaga até amanhã. Mas a gritaria dela fez falta. “Safado, Pilantra, um dia vou te largar e aí tu vai ver!”. E não é que largou mesmo? Desgaçada.
Mas fiquei bem, to indo, to indo. Outro dia acho que vi ela passando ali embaixo, pequenininha. Não dava pra saber né, é muito alto aqui. Mas acho que era ela. É, acho que era. Pelo sim, pelo não, mandei um “te amo, mulher”, bem baixinho, contra o vento, pra ver se chegava nela, mas num chegou. Se chegou, ela não olhou aqui pra cima. Mulher ruim dos inferno, homem não pode chora. Não pode chora não, não pode.

Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
“Ssssshhh”. Meia hora. Meia hora e o jantar vai ta pronto. E eu vou comer, ver a novela, e eu vou dormir. E aí acabou tudo. Meia hora, porra. Meia hora. Cheiro de alho filho da puta, pra onde você levou meu dia?

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