Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os
cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Foi o moço de gravata que mandou eu vir praqui pra cima.
E quem mandou ele mandar foi o outro moço, o de terno. Quem mandou no de terno
eu não sei, mas eles passam tudo aqui embaixo, e eu vejo tudo eles passando
daqui de cima. Feito Jesus no corcovado. Só não abro os braço pra num cair.
O pessoal já foi embora da construção, mas eu gosto de
ficar. É gostoso aqui em cima. É bonito ver o sol caindo ali atrás dos prédio
dos patrão, com varanda e piscina. As vezes aparece um ou outro ali por fora,
umas criança, esposa também. Opa, vento. Segura, cuidado pra não cair. Eu que
não morro na contramão, atrapalhando o tráfego.
Já faz um tempão que ta construindo esse prédio daqui.
Quando eu comecei, já tava na metade. Hoje já tem pra mais de dez andar, e ta
subindo, e subindo. Eu comecei vendo o pôr do sol lá de baixo, a construção era
pequenininha. Dava pra gritar lá pro chão que se ouvia. Agora já ta tão alto que
ninguém ouve. Mas eu falo mesmo assim, pra distrair, né? Quando bate vento,
parece que as palavra que eu falo vão com ele. E deixa elas ir pra onde quiser.
Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os
cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Tá bonita a vida. Ta legal. Eu tenho esposa, filho
saudável, dinheiro, até apartamento com varanda bonitão que nem esse aqui. Tá
boa a vida. Mas sei lá, chega fim de tarde, sei lá. É o cheiro de alho picado,
eu acho. É, o cheiro de alho picado, de começo de jantar, que fode com a minha
cabeça. Todo fim de tarde. Eu sei que chegou o fim de tarde pelo cheiro do alho
que ela ta picando. E depois o barulho, aquele “sssshhhh” do alho na
frigideira. Bate aquela puta depressão. O cheiro do alho picado anuncia o
começo do fim do dia. Não vai acontecer mais nada. Só o jantar, a novela, e dormir.
E aí amanhã começa tudo igual, puta que o pariu. E esse prédio em construção
aqui em frente, não vai ficar pronto nunca?
Ta foda. Cinquenta e quatro anos. É ano pra caralho. Eu
to velho. Minha vida ta começando a cheirar a alho picado.
Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os
cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
Não volto pra casa hoje, tem samba. Volto, né, mas volto
tarde. No começo era bom, voltar tarde assim do samba, e só se joga no sofá e
apaga até amanhã. Mas a gritaria dela fez falta. “Safado, Pilantra, um dia vou
te largar e aí tu vai ver!”. E não é que largou mesmo? Desgaçada.
Mas fiquei bem, to indo, to indo. Outro dia acho que vi
ela passando ali embaixo, pequenininha. Não dava pra saber né, é muito alto
aqui. Mas acho que era ela. É, acho que era. Pelo sim, pelo não, mandei um “te
amo, mulher”, bem baixinho, contra o vento, pra ver se chegava nela, mas num
chegou. Se chegou, ela não olhou aqui pra cima. Mulher ruim dos inferno, homem
não pode chora. Não pode chora não, não pode.
Daqui de cima eu vejo o céu.
Daqui de cima eu vejo o mar, e vejo as pessoas também.
Daqui de cima eu vejo as casas, vejo os morros, vejo os
cachorros e vejo a lua.
Eu vejo tudo, daqui de cima.
“Ssssshhh”. Meia hora. Meia hora e o jantar vai ta
pronto. E eu vou comer, ver a novela, e eu vou dormir. E aí acabou tudo. Meia
hora, porra. Meia hora. Cheiro de alho filho da puta, pra onde você levou meu
dia?
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