Foi numa noite em Paris que eu a conheci. Eu tinha uns trinta anos, ela também, acho. Já faz tempo, essas coisas são difíceis de lembrar quando você tem a idade que eu tenho.
Eu estava sentado ali num cafezinho no Quartier Latin, sozinho, esperando meu café chegar. Devia ser um pouco antes do entardecer. Lembro que o lugar estava cheio, casais americanos e grupos de estudantes universitários parisienses blasé trocavam palavras em francês entre goles de vinho e tragos de cigarro. Todo o ambiente era meio amarelado, com luzes indiretas, bem europeu, assim. Nevava um pouco lá fora. Eu me concentrava no meu livro, estava lendo alguma coisa grega, não lembro se Platão ou Sófocles. Eu gostava muito de ler, naquela época. Hoje não consigo mais, nem com esses óculos imensos que eu uso. Da muito trabalho. Ser velho da muito trabalho.
Mas naquela época eu era novo. E estava lendo Platão. E ela entrou.
Nunca vou saber dizer se o arrepio que eu senti foi o vento gelado invadindo o ambiente aquecido do café ou a visão daquela mulher. Um vestido vermelho, meia calça preta, cachecol e um gorro. O cabelo meio repicado caia, assim, de dentro do gorro, sabe? Ia escorregando de dentro até um pouco abaixo do ombro. Foi amor a primeira vista, meus amigos, amor a primeira vista. Ela olhou em volta um pouco (seus olhos verdes, ah, as morenas de olhos verdes), escolheu uma mesinha de um lugar do outro lado da sala e sentou. E eu não ia falar com ela, juro que não. Sempre tinha sido um homem fiel, e nunca fui muito bom em abordar mulheres, ainda mais as francesas. Mas aí ela acendeu um cigarro e puxou um livro. O mesmo que o meu. Sófocles. Não tive escolha.
Olha, não lembro o que eu falei nem como eu consegui lembrar das minhas aulas de francês da faculdade, só sei que, quando eu fui ver, estávamos os dois discutindo a dramaturgia grega e seus efeitos no mundo moderno, e daí pra falar de amor, vocês sabem, é um pulo. Ah, vocês não sabem? É que hoje em dia ninguém fala de dramaturgia grega, né? Ah, ninguém fala de amor também? Bom, naquela época falavam, e a gente começou a falar de amor. Não lembro muito do que a gente discutiu, não só por causa da minha idade, mas principalmente por que eu não conseguia me concentrar muito no que ela falava, só no jeito que a boca dela se mexia, e na forma como os olhos dela se fechavam, assim, só um pouquinho, quando falava alguma coisa que julgava importante. Ah, meus amigos, se vocês pudessem ter visto...
Não lembro quem sugeriu uma volta pela cidade. Acho que fui eu. Ela hesitou um pouco, mordeu os lábios (ah, menina, menina) mas aceitou. Pagamos e fomos andar por Paris.
O sol estava se pondo. Vocês já andaram em Paris ao pôr-do-sol com uma mulher maravilhosamente linda que acabaram de conhecer e se apaixonar? É uma coisa que todo homem deveria experimentar.
Andamos e falamos de tudo o que você possa imaginar. Lembro até de uma discussão acalorada sobre a comida certa a se servir durante uma reunião clandestina de revolucionários. Eu era a favor de canapés, mas ela achava muito burguês.
Chegamos ali na beira do Sena. O Sena ainda existe? Faz tanto tempo...Ah, existe? Mas duvido que seja tão bonito quanto naquela época.
Chegamos ao Sena e começamos a andar na beira do rio. A luz do sol agora pintava timidamente de amarelo um ou outro ponto da cidade só, o alto de alguns velhos edifícios, e fazia as marolas do rio brilharem de um jeito fosforescente, parecendo...parecendo...sei lá, parecendo alguma coisa muito bonita que eu não consigo pensar agora.
E aí a gente foi atravessar a ponte. Ah, esse momento eu não esqueço não, rapazes. Posso esquecer de tudo nessa vida, nem sei quantos remédios eu tenho que tomar por dia hoje, mas não vou esquecer da hora em que a gente foi cruzar a ponte. O que? Que ponte que era? Sei lá que ponte que era, isso já faz quarenta anos, uma daquelas pontes que cruzavam o Sena, oras. Deixa eu contar a história.
Então, a gente foi atravessar a ponte, e eu lembro que ela dissertava a respeito da poesia concreta (lixo modernista ou vanguarda mal compreendida?), e aí ela parou ali no meio da ponte. Mas calma, não foi só isso. Ela foi ali até a beirada, virou de frente pra mim, e, assim, virada de costas pro água, colocou as duas mãos no parapeito da ponte e deu impulso. E sentou ali. Sentou ali no parapeito! Vocês entendem? Vocês entendem a beleza dessa cena? Paris ali no fundo, o rio passando fazendo aquele barulho que um rio faz quando passa, Paris acontecendo ali em volta da gente, e ela se virou, deu um pulinho e sentou no parapeito! E ficou balançando as perninhas ainda! Aí eu tive que beijá-la. Vocês entendem, né? Entendem.
Cheguei perto e interrompi o monólogo dela (porque, se você parar pra pensar, na verdade, verdade, a poesia livre é isso mesmo, agora, o quão livre a gente quer que ela seja?). Não tinha encostado nos lábios dela ainda, fiquei só com a boca ali, do lado da boca dela, e ela parou de falar. Parou de falar e entrelaçou os braços entre meu pescoço. Sabe, quando elas fazem isso? Apóiam um braço em cada ombro seu e entrelaçam o pulso atrás do seu pescoço?
E aí eu beijei ela. Olha, não vou nem tentar descrever pra vocês, porque vai ser uma perda de tempo. Só vou falar isso: Não sei o que me deu naquele momento, que eu abri os olhos, só por um segundo, ali, no meio do beijo. Eu sei, eu sei, não é muito romântico, mas eu precisava ter certeza de que tudo aquilo era real. E tinha acabado de anoitecer. Naquela época, não sei hoje, mas naquela época a Torre Eiffel costumava ficar toda iluminada com o cair da noite. Se eu falar pra vocês que no momento que eu abri os olhos a Torre Eiffel se iluminou todinha, vocês acreditam? Pois é verdade. Ali estava eu, beijando aquele anjo, aquele sonho europeu em roupas de frio, e ali na minha frente tinha o rio sena, com seus barquinhos restaurantes iluminados passando pra lá e pra cá, e a neve fininha caindo na cidade, e, lá, quase no horizonte, a Torre Eiffel brilhava. Brilhava! Olha só, fiquei até arrepiado, não gosto de lembrar dessas coisas.
Não sei quanto tempo a gente ficou ali naquele beijo. Pode ser durado uns vinte anos, nunca vou saber. Mas eu sei que acabou. Sei que acabou porque eu me afastei e ela desceu do parapeito (outro pulinho, meu Deus, outro pulinho) e eu vi que ela chorava. Perguntei o que
tinha acontecido. Ela olhou pra mim com aqueles olhos vermelhos e verdes e disse que era casada. Eu também era (“eu sei, eu sei, eu já imaginava”). Ficamos ali se olhando em silêncio.
Eu disse que era brasileiro, que estava em Paris a viagem só, que ia voltar na semana seguinte (“eu sei, eu sei, eu já imaginava”) e voltamos ao silêncio.
E em silêncio caminhamos de volta a vida real. Ela morava ali perto do café.
Deixei ela na porta de casa, me aproximei para um ultimo beijo mas ela me afastou, sem dizer nada. Olhei pra baixo e me virei para ir embora, quando ela disse: “São Paulo, né?”
Eu perguntei “O que?”
“Você é de São Paulo, não é?”
Eu fiz que sim. Ela sorriu, se aproximou e sussurrou no meu ouvido: “qualquer dia desses passo na tua cidade, e te encontro num café.” Roçou os lábios nos meus uma ultima vez e virou as costas, não sem antes deixar escapar uma ultima fungada.
E é por isso que eu estou aqui, meus amigos.
Desde que voltei pra cá, toda semana eu passo em um ou dois cafés parecidos com aquele, parecidos com esse, procurando meu amor parisiense. Fico, leio esse livro aqui do Platão, o mesmo que eu estava lendo naquela noite, e espero. Tenho feito isso a mais de quarenta anos. Eu sei, eu sei, vocês já estão fechando, eu estou indo embora. Não foi dessa vez. Mas um dia, meus amigos, um dia ela vai entrar por aquela porta. Ou por alguma outra porta de algum outro café. E a gente vai terminar aquele assunto da poesia concreta.
Os garçons olhavam em silêncio enquanto o velho fechava seu livro e, com dificuldade, se levantava da cadeira para ir embora. Quando ele saiu e desapareceu na noite, Patrícia, a mais nova das garçonetes, não conseguiu segurar um soluço.
-Que história triste.
-É, o amor é uma coisa engraçada, né? – Disse Paulo, o barman, meio sem graça.
Todo mundo ficou ali parado um tempo, sem conseguir juntar a coragem de continuar arrumando as coisas e fechar o bar. Foi aí que entrou uma velhinha pela porta da frente.
-Desculpe, senhora, estamos fechando...
-Ah, me desculpa viu, estou procurando alguém. Um homem, mais ou menos a minha idade, devia estar lendo um livro. Ele não esteve aqui hoje não, né?
Silencio geral. A Patrícia emitiu um som esquisito, entre a risada e o choro, e saiu correndo pro banheiro.
Foi o Paulo que tomou coragem pra perguntar:
-Desculpa, mas...Você não é a moça francesa, é?
Até o vento parecia ter prendido a respiração. A velha olhou em volta, para todos os funcionários de boca aberta do café. Fechou os olhos, apertou-os com força e deu uma risada.
-Ai, meu Deus, foi essa a história que ele contou dessa vez?
Olhares intrigados.
-Meu marido é um escritor falido. Tentou a vida inteira publicar um romance e nunca conseguiu. Escreve mal que dói, coitado. Mora aqui por perto. Toda semana ele vem em algum lugar desses e conta uma história de um dos seus livros engavetados. A favorita dele é a da moça francesa que sobe no parapeito. Foi essa que ele contou, né?
Ninguém falou nada.
-Ai, ai, desculpa viu? O coitado nunca saiu do estado de São Paulo, e vem encher o saco de gente de bem que nem vocês, que só quer trabalhar e ir pra casa. Ele foi embora, foi? Deve estar chegando em casa agora, então. Desculpa incomodar, viu?
E, sem dizer mais nada, a velha deu meia volta e saiu pela porta.
Todos em silêncio. Quando alguém ia fazer algum comentário, Patrícia voltou, limpando as lágrimas.
-Onde está ela? Era a moça mesmo? Era ela, a francesa? Ela encontrou com ele?
Foi Paulo que, depois um longo silêncio constrangedor, passou os braços pelo ombro de Patrícia, abriu um grande sorriso e disse:
-Ela mesmo. O Marcos foi com ela na rua, encontraram o velho ali na esquina. Ele disse que foi lindo os dois se reencontrando.
Patrícia virou para o Marcos, encantada e perguntou:
-Foi mesmo, foi mesmo?
Marcos, sem graça, entrou no jogo:
-Foi, sim. Precisava ver, deram um beijo desses de cinema. Ela na pontinha do pé, ele segurando o cabelo dela, uma mão na cintura. Beijo de cinema.
-E ela entrelaçou os braços ao redor dele?
-Entrelaçou, entrelaçou.
Patrícia não conteve o choro de novo, e, com o rosto dividido entre o sorriso e as lágrimas, começou a ajudar o pessoal a limpar o café para o dia seguinte.
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