Ele já saiu do carro gritando:
-Você não viu a seta?Eu estava dando seta!
O outro se defendia.
-Não olha no retrovisor?
-Eu dei seta!Você que devia ter olhado!Eu não acredito nisso.
Vestia uma camisa branca, divida pela gravata mais sem graça do mundo. Aquilo era um pesadelo.
-Como você me muda de faixa sem olhar no retrovisor? – O outro não deixava por menos.
-EU DEI SETA, CRISTO!
O carro amassou atrás, nada sério, porém ia ser caro concertar. Passou a mão pelo cabelo grisalho e virou-se para trás, inconformado.
O pára-brisa do carro estava ligado, apesar do sol que fazia. Pra frente, pra trás, pra frente, pra trás, num movimento eterno, ignorando a gritaria, o trânsito, tudo ao seu redor. Ele parou por um segundo e olhou aquela cena, e, de repente, viu-se perdido em memórias.
Era de noite e chovia muito. Ele tentava dormir no banco de trás do carro. Só iam chegar à cidade de manhã. Ele, seu pai e sua mãe, que dormia no banco do passageiro com a cabeça apoiada na janela. De olhos fechados, ele sonhava os sonhos que, quando criança, inundam nossa mente, mas que fogem envergonhados quando crescemos, para nunca mais voltar. Ouvia o barulho do pára-brisa, pra frente, pra trás, pra frente, pra trás, hipnótico como o pêndulo de um velho relógio que vira certa vez na casa de um tio-avô distante. Abria os olhos, vez ou outra, e via, de relance, lampejos da estrada que corria para trás. Florestas escuras de pinheiros, sombrias, assustadoras, fascinantes. Decidiu ali que queria ser explorador, quando fosse grande. Iria desbravar as matas mais escuras e descobrir as praias mais belas, vestindo um chapéu e uma jaqueta de couro. Iria dormir nos campos, esquentar comida na fogueira.
“-Pai, quando eu crescer, quero ser explorador.”
“-Explorador? Igual ao dos filmes?”
“-Isso. Igual o dos filmes.”
Deitado, dormiu, ouvindo o som do pára-brisa, e dormindo, sonhou com tudo aquilo que ia fazer quando fosse grande. No sonho conheceu terras distantes e inexploradas, caçou animais exóticos que homem nenhum tinha visto antes, cruzou rios e subiu montanhas, sempre de chapéu e de jaqueta. O pai pensou, com tristeza, que o menino ia descobrir um dia que esse mundo, que parece tão grande quando somos pequenos, é pequeno e sem graça, e que nele não sobrou nada que valha a pena explorar. O pára-brisa continuava, pra frente, pra trás, pra frente, pra trás.
-Você tem seguro?
Aquele mundo, que se estendia infinito atrás da janela do carro, nunca mais foi o mesmo, apesar de nunca ter mudado.
-Você tem seguro?
-Eu... O que?
-Você tem seguro, pra cobrir o acidente?
-Tenho, você não tem?
-Eu não tenho.
-Você não tem seguro? Você espera que eu acione meu seguro sozinho? Eu não vou assumir a culpa disso aqui sozinho não, você que se vire pra pagar o teu que eu pago o meu!
De dentro do carro, o filho assistia seu pai gesticulando, e pensava que os adultos eram estranhos. Quando perguntou para seu pai para que servia uma gravata, ele não soube responder.
O pára-brisa continuava, pra frente, pra trás, pra frente, pra trás.
muito bom!
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