-Faltam palavras. – Sentenciou Sophia, decidida.
-Sim, eu sei. A emoção, as vezes, nos tira a capacidade
de dialogar. De se expressar. – Devolveu o terapeuta, arrumando os óculos de
pequenas lentes redondas.
-Não, não. Faltam palavras mesmo. No dicionário. – Sophia
cruzava e descruzava os braços, inquieta.
-No dic... Como assim? – O terapeuta apoiou os dois
cotovelos na mesa e inclinou o tronco para frente, sustentando o rosto pequeno
e quadrado nos punhos fechados.
-Faltam palavras. Por exemplo, como se chama aquele
silêncio quando, em uma piscina pública ou no mar, você mergulha?
-Hm... – Pensou. E então – Silêncio?
-Não. Silêncio é silêncio. Eu falo daquela sensação de
desaparecimento, quando as vozes dos seus amigos e das famílias e das ondas e
todo o resto em volta acabam num grito mudo. Aquele silêncio pesado, sabe? Que
engloba tudo e parece que só existe você e o mundo e o mundo e você e é pra
sempre. Como chama essa sensação?
-Não sei, Sophia, eu acho...
-Não tem nome! Deveria ter. Porque é uma sensação
importante.
-Sei. Você acha que...
-Aquele alívio de quando você não sabe se tem saldo no
cartão, e a maquininha da Cielo passa de “Processando” para “Transação Aprovada”,
como chama?
-Porque não chamar de “alívio” mesmo, Sophia?
-Porque não é alívio! É muito mais! Não podemos ser tão
genéricos. Não existem vários tipos de banana? Vários tipos de pão? E cada um
tem seu nome. Os alívios também são muitos.
-Sei...
-Como eu te explicaria, em uma palavra, o momento em que
uma memória besta, de dez, quinze anos atrás, me ocorre? Não uma memória
importante, um aniversário ou um fim de ano. Um nada. Quando eu estou assim, de
bobeira, vendo televisão, e de repente me vêm na cabeça um braço de sofá. Um
braço de sofá bege e minha tia Emília tomando coca-cola em copo de festa. Uma
memória que passou quinze anos escondida, dormente, irrelevante, e acordou, e
eu lembro daquilo e nem sei por que. Como eu explico isso sem passar o dia
inteiro procurando adjetivo?
-Sophia, Sophia...
-Não, tem mais! A angústia de escolher, no restaurante
por quilo, entre duas opções mutuamente exclusivas, do tipo massa ou arroz com feijão.
A tensão velada, em uma mesa de bar, quando só sobra uma isca de frango no prato
da porção! Aquela primeira lufada de ar frio quando você sai do carro em uma
viagem de inverno, e o barulhinho de pedrinhas e grama contra o seu pé quando
você pisa no chão. “Crec, crec, crec, ali, filha, a recepção. Pede a chave do
quarto e vai tomar banho, que nós vamos jantar na cidade”.
-Sophia, é sobre isso que você quer conversar mesmo?
-É! É sobre a sensação de acordar doente e não precisar
ir pra escola! Quero falar sobre o geladinho do outro lado do travesseiro,
sobre pegar no sono vendo filme e acordar no meio da noite com a televisão
ligada! Quero uma palavra para a sensação de tomar banho quente com febre, e
outra para aquela luzinha acessa, as três da manhã, no décimo quinto andar do
prédio em frente ao da minha casa!
-Sophia, sua mãe falou que você precisava conversar. É
por isso que estamos aqui. Você não quer me falar sobre você?
-Não. Eu quero falar sobre os outros! Eu quero falar
sobre tudo.
-É?
-É. E eu quero falar sobre aquele vento gelado que bate
na praia as cinco da tarde, quando ainda o sol não foi embora, mas o calor vem
e vai e as vezes esquenta, as vezes arrepia.
-E o que mais?
-E sobre tirar o sapato em casa de avó, e sentir carpete
entre os dedos.
-Hm... – O terapeuta tirou os óculos e esfregou os olhos,
cansado.
-Ah!
-O que mais, Sophia?
-Aquela sensação de virar todas as cartas do bafo na
primeira batida, como chama?
-Não sei, Sophia... Não sei.