Quero abrir um fórum público para discutir a reforma. Não a
agrária ou a tributária, a reforma mesmo. Aquela com cimento, massa corrida,
martelo e furadeira.
Minhas opiniões a respeito da reforma são, segundo alguns
dos setores mais conservadores do país, radicais. Sou contra. Não acho que a
reforma deva existir, nunca, sob nenhum pretexto, salvo se realizada em
ambiente ermo e isolado de qualquer forma de vida senciente.
E aí você pergunta: “Mas Cesar, como vai fazer quando tiver
infiltração, ou problema no encanamento?”. Não sei. Não é problema meu. O que
eu sei é que o barulho de uma furadeira, ou o bate-bate rítmico (que só não
chamo de hipnótico porque a hipnose ao menos é relaxante) do martelo são sons
que ser humano nenhum foi projetado para aguentar.
Não, é sério. Eu acho que a reforma não deveria existir. Em
nenhum momento da evolução humana nós tivemos a oportunidade de desenvolver um
gene que pudesse lidar com o tipo de stress que enfrentamos quando, às nove da
manhã de um sábado, o Doutor Almeida resolve começar a refazer a cozinha.
Alias, pelo contrário. A natureza aperfeiçoou, durante milhões de anos, nossa
espetacular habilidade de acordar e manter-se desperto com o menor dos
barulhos, a fim de proteger-nos de potenciais predadores. Como poderíamos prever
que, num futuro não muito distante, os barulhos não seriam predadores, mas o
Doutor Almeida, e o único risco iminente seria sua morte suspeita, arremessado
do décimo segundo andar por um vizinho insone que acordou cedo a semana inteira?
Uma amiga minha, que compartilha da minha agonia, propôs uma
solução menos radical: A indenização. O morador que quisesse reformar seu
apartamento deveria, obrigatoriamente, indenizar seus vizinhos de porta e
parede. O dinheiro, presumivelmente, sendo usado para uma hospedagem de uma
semana em um hotel, algumas sessões de terapia ou a contratação de um assassino
de aluguel que não se importe em arremessar o Doutor Almeida do décimo segundo
andar.
Mas eu ainda não acho suficiente. Dinheiro nenhum compensa a
terrível sensação de ser acordado, aos poucos, martelada a martelada, pelo
barulho de uma reforma que, você sabe, só vai parar na hora do almoço (e mesmo
assim só por uma hora). Aquela horrível esperança morta que você acalenta; de
que a próxima martelada vai ser a última. O coração humano é uma coisa
incrível. O filho da puta martela, martela, ele martela desde as oito da manhã.
De terça passada. E mesmo assim, naquele breve e abençoado silêncio entre duas
marteladas, você ainda espera, você se atreve a sonhar: Talvez essa seja a
última. Talvez tenha aca BAM. BAM. BAM.
Não. Chega de reformas. Chega do VRUUUUUUUM insuportável das
furadeiras, chega do barulho de futucadas com a chave de fenda (e o cimento chovendo
aos mil pedacinhos no chão, que é o seu teto, como aquele pequeno chuvisco que
precede a tormenta). A verdade é que o ser humano ainda não evoluiu o
necessário para fazer reforma. Não é uma ciência pronta para o uso prático.
Pense: A penicilina jamais seria aprovada para mercado se,
como efeito colateral, levasse as pessoas diretamente a volta do vacinado
lentamente à loucura. A internet nunca teria se expandido ao público em geral
se, cada vez que você se conectasse, uma família ficasse sem dormir. Porque
aceitamos a reforma? Porque não conseguimos enxergamos o absurdo na nossa
frente, gritando, esperneando, martelando?
Chega. Que pesquisemos outras maneiras de se consertar
infiltração, aumentar a suíte principal ou mudar a fiação. Reforma, nunca mais.
Nunca. Nunca. Nunca Mais.
E agora eu vou dormir, nesse silencio abençoado, e amanhã de
manhã ver se saiu alguma coisa no jornal sobre a morte do Doutor Almeida.